Quatro poemas de Iatamyra Rocha Freire | "A palavra precisa ser lambida"
Irma Stern |
Quatro poemas de Iatamyra Rocha Freire
"A palavra precisa ser lambida"
Escrita negra
Escrever é um processo
mas também é instintivo
a construção começa na mente
lá o texto já está vivo
se falo sobre o sol
estou na escuridão a tecê-lo
se descrevo o gosto do sal
é amarga minha língua
a palavra precisa ser lambida
como um animal lambe sua cria
usar todos os sentidos
e também criar a ausência deles
a sílaba poética fia o verso
enquanto converso com o último pássaro preso na garganta.
***
O tempo passa pelo corpo
pela alma pouco a pouco
é fio de Ariadne na mente
memória latente de tudo que foi
nela a saudade que dói
das pessoas que ficaram eternas em algum milésimo de segundo
depois do último suspiro
e se foram desse mundo
o tempo escreve forte ininterruptamente
dentro de tudo que move a gente
meu olhar agora talvez não tenha mais brilho
mas o próximo segundo será sempre a primeira vez.
Irma Stern |
Às duas da manhã
ave suspensa
noite vã
o gato mia a utopia
de ter sete vidas
e nenhum zelo enquanto outros dormem
duvida até do próprio salto
uniforme a porta trancada
às duas da manhã
o gato mia
não há de ser nada
sua cantiga desesperada
sobe na cama
entrelaça o lençol
até a altura do nariz
as duas da manhã
não há de ser nada
o gato riscando a madrugada
com giz de sol
o miado vem mais alto
estridente
já são três da manhã
e o gato mia indiferente à lua
relógio inverso
o sono vai em pedaços
lençol indigesto
cobre e mumifica
o gesto de espanto
três da manhã
o gato mia
e não é santo
arranha a porta do quarto
joga sapatos pro alto
morde e puxa o pé
a fé das coisas persiste
cobrindo as orelhas
pelo eriçado
feito o gato
safado
são quatro da manhã
passou um furacão no quarto
o gato mia alto
quase um orgasmo de fato
calço os sapatos de raiva
o gato me fez assim
miado insistente
o gato cheira a jasmim
enquanto uso
saco plástico e detergente
descrente com o que o quarto virou
aterra toda fedentina
chega de miado
olho pro lado
o gato eriçado
corre pra janela
abro a porta
ele saí apressado
olhar de quem diz
quase consegui
volto pra cama
não há mais miado
quatro e meia da manhã
pássaro canta
galo bate asas
quase cinco
é claro em toda casa
nada do gato
agora desvirginando o jardim
colhendo seus orvalhos
olhos desconfiados de mim
o gato julga até de longe
eu aqui fazendo esse poema
tentando dormir
enquanto o cão pede pra sair
são cinco horas
cinco horas
cinco horas...
***
Mil coisas pra falar
tudo dentro dos versos
que em silêncio guardam segredos
como daquela vez que te vi inteiro
e escrevi a nudez do carvalho visto de baixo
aos pés de um riacho leitoso
ali enrusbeci
momentaneamente cresci vento nas folhas
me senti segura e livre para dizer o que nunca disse
cantei um canto novo
como um anjo em êxtase
asas em fogo
riscando a madeira virgem
pulsando junto
no mesmo rogo de fé
você meu homem
eu sua mulher.
Irma Stern |
Poemas de imagens 3D, repletos de sentidos. Parabéns!!!
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