X Tertúlia Virtual: Inquietudes Poéticas & As Múltiplas Faces de Afrodite
TERTÚLIAS VIRTUAIS | 04
- por Marta Cortezão
“A humanidade é masculina e
o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é
considerada um ser autônomo. [...] A mulher determina-se e diferencia-se em
relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o
essencial. O homem é o sujeito, o absoluto; ela é o Outro.” (Beauvoir, 1970,
p.10)
O livro
O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, teve sua primeira edição em 1949. O
tempo que nos separa deste evento são de exatos setenta e um anos, entretanto,
há ainda a urgente necessidade de trazer estes questionamentos para o século
XXI: qual é o lugar da mulher na atual sociedade? Como estamos construindo este
conceito historicamente e culturalmente? Por que é importante discutir acerca
do gênero? Por que dizer-se feminista provoca tantos desafetos? Sempre é tempo de
despir-nos das velhas amarras da ignorância e buscar entender o real
significado do Feminismo que, em poucas palavras, nada mais é que um movimento
social, não sexista, liderado por mulheres e que reivindica equanimidade
jurídica, política e social entre homens e mulheres. Se nos debruçarmos a
estudar o Feminismo, encontraremos inúmeras histórias de lutas de grandes
mulheres inspiradoras que nos abriram passo para exercer o nosso grito de liberdade. Já não há
como tapar os ouvidos a estas vozes que ecoam cada vez mais alto e, harmoniosamente,
alavancadas pelas múltiplas inquietudes que nos movem no mundo.
Para quem deseja entender o Feminismo, além do livro O segundo sexo, que traz uma análise detalhada da opressão das mulheres, destaco aqui O feminismo é para todo mundo, de Bell Hooks, que aborda como uma educação para o feminismo pode contribuir para uma consciência crítica e uma sociedade mais justa para todos e todas; Sejamos todas feministas, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, um livro onde a autora discute a importância do feminismo no século XXI, destacando a essencialidade do movimento para toda a sociedade; Quem tem medo do feminismo negro?, de Djamila Ribeiro; Uma autobiografia, de Angela Davis; O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres, de Naomi Wolf, dentre vários outros livros.
É evidente a necessidade de falar de Feminismo, por isso, a X Tertúlia Virtual, realizada no dia 23/10/2020, intitulada “Inquietudes Poéticas & As Múltiplas Faces de Afrodite” abordou, em linhas gerais, esta importante discussão, de forma saudável e poética, onde estiveram presentes, em nosso palco virtual, as escritoras e poetas: Maria Ligia Caviglioni (Mato Grosso), SilviaGrijó (Amazonas), Verônica Oliveira (Ceará) e Wanda Monteiro (Pará).
Nesta linha de raciocínio, as inquietudes poéticas presentes no poema Pietá na casca do andrajo, de Wanda Monteiro, se apresentam em um jogo de contrastes e semelhanças que, além de dialogarem com a Pietá de Michelangelo (1475-1564) – obra influenciada pelo phatos grego, cuja expressão dolorosa do rosto de Maria contrasta com a angústia, tradicionalmente, retratada no Renascimento Italiano – dialogam também com o mundo exterior do sujeito poemático. O escritor e retórico latino, Quintiliano, ao reaver o conceito grego de phatos, o traduziu por affectus e o considerou como um intenso sentimento (BOSI, 2003, p. 279). A Pietá, de Wanda Monteiro, em inúmeras modalidades do discurso construído no poema, esculpe, em palavras-mármore, esse phatos, representado pela intensa dor do desamparo, de tristeza e piedade, também captadas pelas lentes do(a) atento(a) leitor(a) que, no ato de sua leitura é tomado(a) por um violento sentimento de afetividade, que atordoa e que empatiza com esta Pietá, invisibilizada pela “casca do andrajo”, que, em súplica, estende a mão pela dor da fome, murmurando “suas imprecações de infortúnios” “e atira seu silêncio/ no vazio da indiferença”, enquanto “o filho sorve a fome” de seus seios:
A PIETÁ NA CASCA DO ANDRAJO
Antes fosse o
destino de uma guerra
mas é o tiro
do escárnio
sobre a face
da fome
a fome
povoando as
calçadas
dormindo sob
fétidas marquises
a fome
na dança dos
malabares
de limão
no mínimo
gesto de súplica
da mão
a pietá em
sua casca de andrajo
murmura suas
imprecações de infortúnios
à espera de
um deus
que não
vingou
nos seios da
pietá
o filho sorve
a fome
e atira o seu
silêncio
no vazio da
indiferença
de quem passa
Os textos poéticos, ofertados, gentilmente, à X Tertúlia Virtual pelas autoras Maria Lígia Caviglioni, Silvia Grijó e Verônica Oliveira pintam o quadro tertuliano que intitulei de “As Múltiplas Faces de Afrodite” por trazerem uma temática em comum: o erotismo poético. E, neste contexto, temos a linguagem literária utilizada como veículo de transgressão, no sentido em que evidencia “o corpo como espaço simbólico de luta e resistência” (LOUSA, 2017, p. 01). Mas é possível falar de uma relação entre o caráter erótico da poesia e o caráter poético do erótico? Octavio Paz afirma que:
“A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode
dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda, uma
erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição complementar. A linguagem –
som que emite sentido, traço material que denota ideias corpóreas – é capaz de
dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo é
mera sexualidade transfigurada: metáfora.” (PAZ apud RODRIGUES, 2012, p.18)
O poema O Balançar, de Silvia Grijó, conjuga, harmoniosamente, erotismo e poesia, quando utiliza, tendo como cenário a natureza, a linguagem poética para narrar a consumação do ato sexual através da metáfora do movimento das águas, apoiada no campo semântico-sensorial do substantivo-verbo “balançar”. É o movimento da canoa nas águas o leitmovit do poema que deságua na sensação de calmaria, no “lenitivo”:
O BALANÇAR
Na canoa
O amor
Acorda as águas
O balançar
Espanta as piabas
Assusta os mergulhões
Afugenta as garças
Encanta as gaivotas
Assanha o Boto
A flor da uapiê
Enrubesce...
No lenitivo
Remamos...
Sobre como a personagem feminina é perfilada na
literatura canônica, Ruth Silviano Brandão afirma que esta personagem, ao longo
da história, “construída e produzida no registro do masculino, não coincide com
a mulher. Não é a sua réplica fiel, como muitas vezes crê o leitor ingênuo. É,
antes, produto de um sonho alheio” (BRANDÃO apud
LOUSA, 2017, p.4); esta afirmaçao dialoga, diretamente pela via
histórico-filosófica-literária, com o que afirmou Simone de Beauvoir, já em 1940: “toda
história das mulheres foi feita pelos homens” e que “o problema da mulher
sempre foi um problema de homens” (BEAUVOIR, 1970, p.166). Para tanto, cito
abaixo os poemas Puta, mas nunca tua, de Maria Ligia Caviglioni e Dualismo,
de Verônica Oliveira, como exemplo desta poética que busca a transgressão do
espaço simbólico deste universo estruturalmente opressor de uma sociedade patriarcal, revelando o
outro lado do “não dito”, onde a voz poética se (re)afirma “dona de si” para (des)construir
a representação feminina literária feita pelo olhar do masculino ao longo dos
séculos e romper com o interdito:
PUTA, MAS NUNCA TUA
Que fale de mim
Tua língua
Que tantas outras
Já conheci
Posso até ser Puta,
Mas nunca tua
Gosto de homem
Que sabe ser macho
Que me enlouqueça
Por cima
e por baixo
Gosto das orgias
Sussurradas no ouvido
Como profanas
declarações
de amor e poesia
Nunca saberá a dama
Que bem sei ser
Quando as luzes
apagam
Em busca de prazer
Posso até ser
Puta,
Mas nunca tua
DUALISMO
me acha linda
o outro me arrepia,
me faz delirar
um me põe no colo,
me acalenta,
o outro me estimula
me deixa voar
um me quer
pra sempre
o outro nem tanto
um me corta
as fantasias
o outro advinha,
quer realizar
o gostar de um
me deixa grata
o do outro me encanta
em um eu me encontro,
no outro me perco
um é porto seguro,
o outro alto mar...
Nestes dois poemas, cada sujeito poético feminino, do alto de evidente discurso de empoderamento, possui plena “consciência e entendimento de seu corpo e de sua voz” (LOUSA, 2017, p. 19). Portanto, este discurso poético atravessa a realidade, suscitando questionamentos sobre a sexualidade para além do espaço privado, vez que transfere esta discussão para as esferas do social e do político, onde (co)existem os mais diversos tabus; ou traz ainda, à roda de discussão, certos (pre)conceitos presentes na esfera literária, como por exemplo, a representação da mulher como objeto de desejo ou como a musa inspiradora. Há, nos dois poemas acima citados, veemente negação do sujeito feminino poético a “ser o objeto, o Outro”, já que esta versão do "Outro", como afirma Beauvoir, "permanece sujeito no seio de sua demissão” (BEAUVOIR, 1970, p. 70).
É a escrita tábua de salvação, resistência e transgressão, é também linguagem simbólica que liberta corpo e mente da violência do silenciamento, dos flagelos da invisibilidade social e por que não da cruel sina de apêndice do homem?
X Tertúlia Virtual, emitida em 23/10/2020.
Referências:
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do
Livro, 1970.
BOSI, Alfredo. A
interpretação da Obra Literária – in “Céu, inferno: ensaios de crítica
literária e ideológica. Editora Ática, 2003.
LOUSA, Pilar Lago e. Corpo com resistência: questões de gênero em poemas de Elizandra Souza.
Disponível em https://www.researchgate.net/publication/325771713_Corpo_como_resistencia_questoes_de_genero_em_poemas_de_Elizandra_Souza. Acesso em 06 de novembro de 2020.
RODRIGUES, Claudicélio da Silva. 'Corpo de Deus, Boca Minha': Adélia Prado e o Erotismo do Sagrado.
Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/flbc/article/view/17241. Acesso 21 de novembro de 2020.
SANTOS, Aldenise Cordeiro; BEZERRA, Ada Augusta
Celestino. O Segundo Sexo de Simone
Beauvoir: estudo acerca da construção do conceito mulher. Disponível em https://eventos.set.edu.br/enfope/article/view/5243. Acesso 28 de outubro de 2020.
SENA, Odenildo. Aprendiz de escritor - sobre livros, leituras & escritos. Manaus: Editora Valer, 2020.
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