Clarice em vários espectros | Marilia Kubota

 

MOSAICO Coluna 25    Crônica

CLARICE EM VÁRIOS ESPECTROS
por Marília Kubota

Neste dia 10 de dezembro celebram-se os cem anos de Clarice Lispector. Sem formação acadêmica em sua obra, não tenho condições de analisar a obra dela.  Vou dar pitacos  como leitora apaixonada.  
Aos dez anos a li pela primeira vez.  Era a crônica "O ato gratuito", publicada numa antologia escolar. Eu ouvia a professora ler, intrigada. Por que alguém consideraria um prazer  beber água em  fonte pública ? Eu nada conhecia de poesia. Nunca tinha ouvido falar de Jean Paul Sartre ou existencialismo. O nome da autora ficou gravado em minha mente.
Ainda, como leitora iniciante, lembro dela como tradutora do romance "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde. Era um livro de bolso da Ediouro, que eu comprava pelo correio. Não havia livrarias em minha cidade natal. Eu só podia ler emprestando livros da biblioteca de meu tio, quando ia visitar a avó, em São Paulo ou comprando livros pelo correio.  
Aos quatorze anos, já estudava em Curitiba. Me filiei à Biblioteca Pública do Paraná. Procurei a estante com os livros de Clarice. Li todos. O que mais gostei na época foi "A paixão de G.H." Citava a torto e a direito. Até para a terapeuta, a quem passei a frequentar depois que desisti do ensino médio. Eu lia Clarice, como uma devota. Lia Clarice, insone. Em cartas para a terapeuta, citava trechos de seus livros. Falava dela a amigos e namorados. 
A influência foi registrada no jornal Nicolau, onde publiquei poemas pela primeira vez. O título da colaboração era: "A paixão segundo MK". O título de romance de Clarice tem origem no livro de São Mateus, da Bíblia.  Mas foi a autora ucraino-brasileira quem usou as iniciais para marcar a protagonista aristocrática. 
Poderia falar de  livros celebrados, como "Laços de família" e "A legião estrangeira". Mas escrevi e reescrevi sobre as páginas  "A maçã no escuro". É a história do desmemoriado Martim, que comete um crime, se refugia num sítio e passa a conviver com duas mulheres estranhas. Por que gostei de GH e "A maçã no escuro" ? Uma pista é a solidão dos protagonistas. Em GH, o texto poético e uma remissão à náusea existencialista. Em "Maçã", o labirinto filosófico em torno do tema da queda da condição humana. 
Era adolescente quando os li. E agora, relendo outro texto antológico, o conto "A legião estrangeira", vejo outra Clarice. É a história da filha da vizinha da escritora que a atormenta. Na leitura juvenil, via apenas a relação entre uma criança reprimida e solitária e uma adulta independente. Na releitura, vi a crítica social, percebendo que a liberdade da escritora, presente desde "O ato gratuito", era condição de quem tinha condições de viajar pelo mundo, por ser casada com um diplomata. 
Durante a vida adulta de leitora, descobri outras autoras, além de Clarice Lispector e Lígia Fagundes Telles. As duas foram as escritoras mais conhecidas para as leitoras de minha geração. Depois da internet e dos apócrifos de Clarice, muitas escritoras, para posar como cult, declararam nunca tê-la lido. Ou só a conhecerem pela adaptação de "A hora da estrela", que considero o mais fraco de seus romances. Ao contrário do que se pensa, este não é a única obra com crítica social dela. Em Clarice, como na boa literatura, há referência à desigualdades sociais em todos os textos. 
A indústria do livro descobriu a Clarice judia, pesquisa polêmica feita por Benjamim Moser, que encontra no estupro da mãe dela uma leitura psicanalítica para as narrativas da autora. Na minha opinião, a pesquisa iconográfica  de Nádia Batella Gotlib é melhor para descobrir Clarice. Além de cartas trocadas com Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo, Fernando Sabino e outros avatares da literatura dos anos 1960. 
A leitura de Clarice ainda impacta. Ela me levou a ler Katherine Mansfield. Já era mais leitora de escritoras. Mas, a partir dos 2000,  a preferência pela autoria feminina foi acentuando.  
Os 100 anos de Clarice são um reencontro com a leitora insone. Eu a lia  sem tempo para dormir, segundo o conceito de Ricardo Piglia. A criadora de Joana, G.H., Macabéa, Lori e Virgína, convivia com a palavra e a paixão .  

Comentários

  1. Obrigada por me permitir viajar nas obras de Clarice, por meio de seu olhar apaixonado.

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  2. Obrigada por me permitir viajar nas obras de Clarice, por meio de seu olhar apaixonado.

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