MulherArte Resenhas 01 | "Outros cantos": um integrante do cânone literário
Outros cantos: um integrante do cânone literário
- por Ane Ramos
Durante evento com escritores, ao apresentar seu romance Outros cantos como um dos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura 2017, Maria Valéria Rezende comentou a ambiguidade presente no título de seu livro. Tratava-se de outras vozes, outras cantorias – como o aboio de um sertanejo quando chama o gado – e também outros lugares, outros territórios. Com isso, a autora ampliava as possibilidades de interpretação de sua obra.
Outros Cantos flui das percepções de uma narradora mulher de mais de 70 anos que, ao fazer uma viagem de ônibus ao agreste do Brasil, relembra a viagem que fez há mais de 40 anos com destino ao povoado sertanejo de Olho d’Água. Na época, como futura professora do programa de educação para adultos do governo militar, o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), aceitara paralelamente uma missão solitária em pleno regime de ditadura no Brasil: estabelecer uma frente popular que pretendia alastrar-se pelo país e pelo continente contra todas as formas de repressão. A condição de instrutora lhe conferiria a discrição, necessária à uma militante de esquerda, para criar condições para a vinda de companheiros para o sertão. Juntos desejavam mergulhar “no seio do povo” para criar um caminho democrático que mantivesse e tornasse libertadora a fé dos moradores daquele povoado. A fé manipulada e distorcida pela religião e pelos donos de propriedades rurais e fábricas seria transformada por meio do paciente e persistente trabalho de conscientização, organização e luta. O país seria modificado pela ação de seu povo. Esse era o plano. O enredo transcorre alternando impressões da mulher de seu assento do ônibus que segue na estrada, à rotina da jovem em Olho d’Água. Inclui ainda lembranças de outras viagens feitas por ela ao México e Argélia, aparentemente em missões como freira.
Apesar de também ser freira, Maria Valéria Rezende afirma que há uma distinção entre ela e a autora-modelo. Embora tenha feito os percursos da personagem, a narradora seria mais sentimental, sonhadora e introspectiva. A forma como a experiência em Olho d’Água e em outros desertos é relatada provoca dúvidas ao leitor quanto a essa distinção.
Ao chegar em Olho d’Água, Maria era uma jovem de trinta anos atravessando a fase da juventude para a idade adulta e apostando sua vida naquilo que acreditava ser maior que sua própria vida: sua missão como militante. À princípio há um estranhamento com o lugar onde o calor e a dinâmica do povoado a faziam pensar naquele mundo sem nada. Silencioso, um mundo sem criador. E ela, com seus sentimentos, imobilizada pela quentura e a solidão, sentia-se como um fóssil. O aboio de um sertanejo coloria aquele lugar, como um canto encarnado, vivo. À noite, as conversas com os moradores também traziam a vida daquele lugar.
Ao longo do tempo, Maria vai pouco a pouco integrando-se ao povoado. É seu objetivo de camuflar-se como “um peixe dentro d’água”, misturada ao povo. Mas é também o tempo que se estende e que não traz a confirmação do início de seu trabalho como professora. Por meses ela aguarda uma resposta do vereador e nada acontece. Enquanto isso, para sobreviver naquele mundo, coloca-se humilde expondo suas ignorâncias e perguntando sobre tudo. É um mergulho para dentro daquela vida miúda. É um sucessivo aprender a comer, falar e compreender gestos daquele canto do seu país que tem novos significados. Vai descobrindo tudo o que suas leituras prévias sobre o local escolhido para sua missão, não revelaram. Começa a trabalhar no processamento de fios e na confecção de redes. Trabalho exaustivo a todos ali. Apenas aos domingos, por respeito à lei divina do repouso semanal, as ruas ficavam vazias e as pessoas se escondiam em suas casas. Aquilo lembrava as cidades argelinas sagradas de M’Zab às sextas-feiras. Olha as sertanejas e enxerga deusas indianas. Aqui e ali, Maria faz conexões entre a vida no sertão e a igual dureza que vira em outros cantos do mundo.
E outras conexões surgem entre o leitor e os personagens das lembranças da senhora que segue na estrada com destino a um sindicato no sertão em que fará uma palestra, a mesma Maria. É a partir das histórias e do esmiuçar de sentimentos e condições de vida daquelas pessoas que a autora explicita as carências e as injustiças que vê no sertão, no Brasil e no mundo. No contínuo ir e vir da memória e retorno ao ônibus que a chacoalha nas estradas, a percepção do leitor também é sacudida.
Maria do Socorro, a menina de quem Cícero se agradou, é um dos personagens. Ele montou casa, roça e, desassossegado, sumia na caatinga. Nenhuma notícia chegava para Socorro. Ela ficava junto aos pés de feijão de corda da pequena roça. Para ela o tempo se resumia à fuga para casar, à morte da menina que havia parido sozinha e que morreu e às partidas e chegadas repentinas de Cícero.
Entre outros personagens, há o casal que Maria encontra em uma casinha quando decide andar pelo meio do mato em um dia de folga. O marido ameaça bater na mulher enquanto ela grita que é uma mulher direita. Maria tenta conter o casal e depois é aconselhada a não se meter em briga de marido e mulher. E fazer o que com a violência vista e o nó doloroso apertando seu coração e sua garganta? Pelos olhos idealistas de Maria, o leitor enxerga a dor, a exploração daquela gente pelo “Dono” da fábrica, a inclemência do sol daquele lugar e mais a beleza dos saberes do povo. A vida parece ser mais forte que tudo. Há seca, mas também há festa. Há sofrimento e vida. Fica evidente o como tudo é muito mais misturado e complicado do que supunha a jovem militante.
Ainda pelos olhos de Maria, vemos imagens sensíveis naquela realidade tão áspera. Descreve cisternas novinhas e brancas com a forma de um peito materno que dá de beber aos filhos no verão. Recebe um bando de meninos a quem chama de inocentes. E assim são “não por não serem capazes de fazer o mal, mas por serem ignorantes do mal que lhes podia ser feito”.
É impossível não lembrar de Vidas secas e toda a contextualização das condições precárias da vida no sertão. A aceitação da exploração e a injustiça que alimenta e dá sequência àquela realidade. A espera em nome da fé e as constantes conversas em torno da vinda da chuva e do tempo bom que ela trará.
O tempo segue sem novidades sobre a escola e Maria se entristece, passa mal e é acolhida pelos moradores. Nos momentos de tristeza, se recolhe em sua rede com sua caixinha de objetos que lhe trazem boas lembranças. Lembranças que são mescladas, ao longo de todo o romance, pela imagem de uma figura masculina que a olha com olhos profundos. É como uma figura mítica que aparece em diferentes lugares de sua trajetória de viagens, sempre lhe dirigindo um olhar penetrante e deixando um objeto, como um símbolo do encontro fugaz. Estas aparições provocam o leitor a inferir sobre o que poderia ter acontecido se estes encontros fossem além da troca de olhares ou mesmo quem seria esta pessoa que está presente em tantas localidades e sempre em destaque. Seria sempre a mesma pessoa? Essas questões acompanham o leitor o tempo todo.
Finalmente Maria é comunicada que as aulas podem começar. Inicia os preparos do espaço cedido e a planejar como colocar seu plano, enfim, em prática. Munida de materiais com o método Paulo Freire iria alfabetizar conscientizando o povo de sua realidade, seu próprio saber e seu poder.
Uma noite, acorda com barulhos e conversas sussurradas. Não teve dúvidas que poderia ser descoberta e capturada. Para sua surpresa, antes de ser dominada pelo medo, já batiam à sua porta para que escapasse. Neste momento descobre que o povo daquele lugar sabia mais sobre ela do que ela imaginava. Dezenas deles tentavam ajudá-la a fugir. Apressa-se com água nos olhos e a sensação de que ninguém viria para aquele canto depois dela. Passara alguns meses no lugar que pensava seria o lugar de sua vida por muitos anos.
Agora, quarenta anos depois, ela retorna ao sertão. Na fuga, havia tratado de agarrar o que restou de suas utopias e formar novos sonhos. Eram menores, mais humildes, às rés do chão, como diria Antônio Candido. Mas eram sonhos vivos.
Com paciência e esperança, Maria retorna ao sertão fortalecida. Tem muito vivo na memória o legado de Olho d’Água: a resistência aos percalços, às decepções e aos desafios. Estava voltando para dar uma palestra em um sindicato. Estava trazendo esperança e ainda era movida por sonhos.
Esperança e sonhos tão necessários nestes nossos tempos. Outros cantos revela cantos internos da nossa existência frente às tantas realidades externas à nossa volta.
“Escrevo porque tem coisas sobre as quais tenho que dar testemunho. Tem pessoas letradas que não viram o que eu vi e vejo”. E assim Maria Valéria encerrou sua participação naquele evento.
Bibliografia
REZENDE, Maria V. Outros cantos. Rio de Janeiro, Alfaguara, 1ª reimpressão, 2016.
Ane Ramos, paulistana que, entre as pausas do trabalho como consultora, percebe como seu fazer criativo parte de memórias de descobertas com a natureza, da organização sintética de um haicai, de uma canção, de momentos do mundo. Graduada em Publicidade e licenciada em Linguagens, tem a arte e a literatura como expressão, satisfação, respaldo e impulso para o viver e a prática docente.
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