MulherArte Resenhas 02 | "Uma falha, uma falta, uma fissura"
“Uma falha, uma falta, uma fissura”
- por Luiz Renato de Souza Pinto
“O coração pensa constantemente” [1], esta imagem me surge de modo epifânico no início do segundo ano desse pandemônio. Rosângela Vieira Rocha é de arribaçã, pois que vem das Minas Gerais para a capital federal, como Juscelino e muitos mineiros da gema: “Nos cursos de gemologia que fizemos juntas, no universo das pedras que tanto amamos, o rubi sempre foi a mais preciosa, a mais cara, a mais perfeita das gemas” (ROCHA, 2020, p. 194).
Dentre as
epígrafes encantatórias que fatiam a obra, destaco a última, de Adriane Garcia,
“A tristeza é um sentimento que danifica os pulmões”. E a viagem, para mim, se
inicia com a presença de Clarice, como uma dedicatória inserida a título de
devolutiva amorosa, plena: “Quero que receba de novo o sopro de vida com que
foi concebida” (ROCHA, 2020, p. 14). Clarice, como Luísa, sabia que “Nenhuma
perda se parece com a outra” (ROCHA, 2020, p. 16).
Narrando o
aniversário de vinte anos da irmã, lê-se que saltavam da ponta da agulha a voz
de muitos bambambãs, como Ray Charles com “Stella by Starlight”, and “Ruby”. A
narrativa se espessa e, depois de Bibiana e Belonísia, de “Torto Arado”,
envolvo-me com Luísa e Rubi, “a sua proximidade, a identificação, a lealdade
que existe entre elas” (ROCHA, 2020, p. 29).
O furto das
calcinhas no varal, transformado em anedota, “eram parentes próximos de algumas
autoridades locais” (ROCHA, 2020, p. 32); o pensamento interiorano replicado
pela memória; a presença da perda não se descola em nenhum momento da escrita,
“os lutos vão se seguindo como contas de um colar doloroso, que espetam como
cardos” (ROCHA, 2020, p. 40). Relação que constrói pontes, pois “entre duas
irmãs as trocas fluem como os rios,” (ROCHA, 2020, p. 50), ou ainda “um par de
jarras se conhece pelo olhar” (ROCHA, 2020, p. 51). Mas o jogo é entre as duas:
“o baralho ainda não chegou aí” (ROCHA, 2020, p. 54).
Seu lugar não
seria na Serra do Caparaó, contraponto ao footing em que os saltos altos das
moças se equilibravam entre os paralelepídedos das ruas do interior. “Mãos nos
ombros ou na cintura só ficavam bem para noivos, de aliança na mão direita.
Aliança de ouro, pois prata era considerado metal sem nobreza para selar
compromissos” (ROCHA, 2020, p. 71).
Rubi era exímia
datilógrafa, e exercia o ofício no cartório do pai, com maestria. “Tudo era
feito com cópia, usando papel carbono, e não havia como corrigir. Cada página
errada tinha de ser inteiramente refeita. As máquinas eram pesadíssimas e os
datilógrafos se esfalfavam, manchando as mãos de tinta roxa”. (ROCHA, 2020, p.
97). Seu casamento quase trouxe lágrimas ao pai, entrando na igreja; talvez
pelo fato de que perderia sua serviçal (não remunerada), de mudança para outra
cidade.
“Atribuo à minha
irmã o fato de ter descortinado para mim um mundo novo, como se ela tivesse me
aberto as portas de uma percepção que eu desconhecia possuir” (ROCHA, 2020, p.
121). Aldous Huxley, com seu paradoxal céu/inferno, no qual se é preciso
“Escovar um abacaxi com escova e detergente” (ROCHA, 2020, p. 135). “O vírus é
um mensageiro estranho, parece que veio só para mostrar que o rei está nu,” ROCHA,
2020, p. 136). Não seria mineirice demais enxergar Fernando Sabino por aqui?
O voo do
helicóptero atirando panfletos em que se lia uma estrofe dos Lusíadas de Camões
me intrigou. Corria o ano de 1964; “talvez tenha sido obra de alguma
organização de esquerda, tentando enviar uma mensagem codificada. Curiosamente,
vi depois que era uma descrição do escorbuto, doença motivada pela falta de
vitamina C” (ROCHA, 202O, p.141-142). “C” de Camões. E a referência à vitamina
me faz lembrar da laranja, e do tom alaranjado da foto da capa, e da inferência
às milícias contemporâneas enraizadas no poder. “Perda e medo, os substantivos
mais pesados da nossa língua” (ROCHA, 2020, p. 153).
Finca-pé,
grapette, folha de fícus, estas sem valor ornamental, mas que dão conta das
dificuldades financeiras em se trabalhar com ornamentação de salões, igrejas e
locais para cerimônias especiais. A narradora confessa sua admiração por
Clarice Lispector, quase ao final da narrativa (ROCHA, 2020, p. 186) e se
refere a ela para conversar com o leitor sobre preferências literárias, as suas
e as de Rubi, com destaque para a predileção da irmã pelos policiais de Ágata
Christie e os romances históricos e ensaios.
Em crônica
publicada a 25 de novembro de 1967, no Jornal do Brasil, Clarice discorre
acerca de uma moça que a secretariou nos serviços do lar e que a assuntou se a
mesma escrevia livros.
Respondi um pouco
surpreendida que sim. Ela me perguntou, sem parar de arrumar e sem altear a
voz, se eu podia emprestar-lhe um. Fiquei atrapalhada. Fui franca: disse-lhe
que ela não ia gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados. Foi
então que, continuando a arrumar, e com voz ainda mais abafada, respondeu:
‘Gosto de coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar’ . (LISPECTOR, 2018,
p. 45).
Há leitores que
mesmo ainda em formação, ou com pouca oportunidade de leitura, desenvolvem o
gosto pelo mais complexo, não se atendo apenas ao trivial. Precisamos descer do
salto e parar de achar que apenas os iniciados podem ler obras dotadas de maior
complexidade, mesmo que o calçado se esgueire, aqui e ali, nas imperfeições dos
paralelepípedos. Ainda não se calçam as ruas e calçadas das ruas com
porcelanato.
REFERÊNCIAS
LISPECTOR, Clarice. Uma mineira
calada. In: Clarice Lispector. Todas as
crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
ROCHA, Rosângela Vieira. O coração pensa constantemente.
Cajazeiras: Arribaçã, 2020.
[1]
Você pode
adquirir o livro diretamente com a autora pelo e-mail rosavi@uol.com.br, https://www.facebook.com/rosangela.vieirarocha e instagram
(@rosangelavr15), ou pelo site da editora Arribaça (arribacaeditora.com.br).
Valor do exemplar: R$55,00 (frete incluído).
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