MulherArte Resenhas 03 | Escrever o luto: "O indizível sentido do amor" (2017) e "O coração pensa constantemente" (2020), de Rosângela Vieira Rocha
Escrever o luto:
O indizível sentido do amor (2017) e O coração pensa constantemente (2020), de Rosângela Vieira Rocha
Rosângela
Vieira Rocha escreveu dois romances autobiográficos nos quais elabora o luto: em
O indizível sentido do amor (2017) trata-se
da morte de seu marido, chamado simplesmente de José, e em O coração pensa constantemente (2020), o foco recai sobre a irmã
mais velha, que no livro recebe o nome fictício de Rubi, porque era uma
verdadeira pedra preciosa. Em cada um dos romances, ao se colocar diante da
morte, a autora rememora os últimos momentos, a doença, a vida pregressa
daquelas pessoas que foram tão íntimas durante anos e agora jazem mortas.
Apesar
de saber vagamente da militância do marido durante a ditadura, tem pouca informação porque ele não gostava
de falar sobre o passado. Assim, já no primeiro capítulo de O indizível sentido do amor a narradora
conta que viajou a Portugal para encontrar Alípio Cristiano de Freitas, que
tinha tido contato com o marido na prisão; ambos foram torturados, resistiram,
não delataram os companheiros. Ele se calava porque a pessoa traumatizada evita
voltar atrás e reviver os momentos dolorosos; não é discrição, não é timidez, é
difícil enfrentar os fantasmas da tortura. A narradora precisa dessas
informações para completar o seu livro, para “fechar uma ferida, diminuir esse
peso que [lhe] dobra os joelhos” (Rocha, 2017, p. 13).
No
caso da irmã, a rememoração volta à infância: sendo a narradora a caçula, ela
admirava a mais velha por sua beleza, sua presença, seu carinho quase-materno.
Ao evocar esse passado mais longínquo numa cidadezinha do interior de Minas, retrata a vida acanhada de uma família da
pequena burguesia nos anos 1950-60. O romance começa com uma cena
significativa. A narradora precisa comer, mas não consegue engolir nada um
semana após a morte da irmã. Tira a tampa da vasilha da bacalhoada, prato
predileto da irmã. “Mas em poucos segundos começa a náusea, a lava, a tontura,
o nojo, e tenho de correr para não vomitar ali mesmo, na fila da comida”
(Rocha, 2020, p. 13). Luto e nojo são sinônimos, portanto, fica claro que a
pessoa enlutada não tem apetite, sente engulhos só de pensar em pratos que, em
outras ocasiões, pareceriam saborosos e tentadores.
Escrever
é tentar exorcizar a morte, o impasse em que se encontra diante do vazio criado
pela ausência da pessoa amada. Roland Barthes, no dia seguinte ao da morte de
sua mãe, em 26 de outubro de 1977, começou um Diário de luto. Ele escreve não para se “lembrar, mas para combater
a dilaceração do esquecimento na medida
em que ele se anuncia absoluto” (Barthes, 2011, p. 110). Durante os seis
meses que durou a doença da mãe, ele estava “perdidamente por conta dela”
(Barthes, 2011, p. 16). Para elaborar seu luto ele escreve; porém, o ato mesmo
de escrever choca-o porque isso revela
que seu espírito está alerta. “O espantoso dessas notas é um sujeito devastado
submetido à presença de espírito”
(Barthes, 2011, p. 30).
O
sobrevivente se depara com a culpa por continuar vivo. “A razão da grande
culpa, que me atormentou durante meses e que às vezes ainda aparece,
sorrateira, me espezinhando, é o fato de eu estar viva” (Rocha, 2017, p. 161).
Barthes também afirma que a morte da mãe não lhe tira o desejo de viver. “[...]
que essa morte não me destrua completamente, isso significa que decididamente
desejo viver perdidamente, até a loucura, e que, portanto, o medo de minha
própria morte continua aqui, não foi deslocado nem uma polegada (Barthes, 2011,
p. 21).
Há
momentos em que o luto provoca desalento, o sobrevivente se pergunta por que
não ele, por que foi o outro que morreu. Barthes se refere à acídia, falta de vontade de agir. No livro Monodrama, Carlito Azevedo também
escreveu sobre a morte de sua mãe a fim de manter o autocontrole. “Venho
escrever por medo de perder a razão, não pelo estardalhaço dos nervos, que não
há, mas pelo seu contrário sinuoso, a idiotia” (Azevedo, 2009, p. 139). Acídia
e idiotia são sentimentos parecidos que apontam para um sofrimento
interiorizado, nada espetacular, nada teatral.
Como
Barthes se recusa a histerizar ou
teatralizar o luto, a manifestar publicamente o seu sofrimento, o luto fica
todo contido, fechado. No Diário de luto
Barthes confronta seu desejo de luto privado e a pressão dos amigos para que se
cure: o luto não é uma doença, não há cura possível. Não sendo contínuo, o
sentimento do luto pode se voltar para a interioridade e para o silêncio ou, ao
contrário, para as trivialidades externas: trata-se, no primeiro caso, de uma
atitude mais nobre e solitária, enquanto o segundo só desencadeia mais vazio
ainda. Ao contrário do que se diz, o tempo não faz passar o luto, ele só
elimina “a emotividade do luto”
(Barthes, 2011, p. 98).
A
morte das pessoas, públicas ou privadas, passa por vários momentos: “um acontecimento, uma ad-ventura, e como
tal mobiliza, interessa, tensiona, ativa, tetaniza. E depois, um dia, já não é
um acontecimento, é uma outra duração, comprimida, insignificante, inenarrada,
abatida, sem apelo: verdadeiro luto insuscetível de qualquer dialética
narrativa” (Barthes, 2011, p. 48).
O
luto se perpetua, porém de maneiras diferentes. Rosângela Vieira Rocha, nas
intervenções em sua página do Facebook evoca datas de aniversário, fragmentos
de lembranças tanto da irmã quanto do marido. E nos dois romances, pode-se
perceber uma evolução nos sentimentos da narradora: ora evoca a doença, ora se
ocupa com a vida que continua pulsando; interroga-se sobre tudo o que poderia
ou deveria ter feito, como se fosse possível saber quais eram as escolhas
certas e racionais, quando ela mesma se dá conta de que a vida se dá aos
trambolhões. Fica sabendo, pelo sobrinho, que a irmã não gostava de suas conversas
durante as últimas visitas quando ela pensava fazer o melhor para distraí-la.
A
narradora divide o protagonismo com seus biografados porque, ao falar do
outro, fala também de si, porque o eu só
existe em relação com o outro e vice-versa.
Ao final de O indizível sentido do
amor a narradora se pergunta se o retrato que fez de seu marido era justo,
depois se corrige para revelar que o que fez não foi, propriamente, a biografia
do marido, mas da relação dos dois. “Mas não é a sua história, é a nossa, ou é
a que imagino ser a nossa, ou o que gostaria que fosse, talvez seja a minha
própria história” (Rocha, 2017, p. 187). Em O
coração pensa constantemente a narradora procede da mesma maneira, refere-se
a uma relação de irmãs, dos afetos, das disputas, do ciúme e até das picuinhas
tão comuns entre irmãs; fala também dos pais, de hábitos interioranos da época
em que a irmã era mocinha e ela era uma criança curiosa e “abelhuda”.
Barthes
conta que nos últimos seis meses de vida da mãe, houve uma inversão de papeis:
ela se tornou sua filha, porque necessitava de seus cuidados; de maneira
similar, no livro Da vida nas ruas ao
teto dos livros de Clarice Fortunato (2020), a narradora diz que os papéis foram se
invertendo, ela se tornava mãe de sua mãe, cada vez mais enferma e cega,
configurando uma confusão de estatutos. Após a morte da mãe, quando ela tinha
13 anos, a protagonista-narradora se sente muito só, órfã, e sem arrimo. Mesmo
ao escrever o livro, a ferida está lá, não cicatriza nunca. “O amor, esse
sentimento milagroso que nos conecta, é a fortaleza que me revigora das
angústias e ameniza o vazio da sua existência na minha vida. E é pela
transcendência desse mesmo amor que escrevo em sua memória” (Fortunato, 2020,
p. 82).
A
narradora de Rosângela Vieira Rocha coloca-se no presente da pandemia, o luto
que sente pela perda da irmã se estende, adquirindo uma dimensão coletiva. “O
luto por você, e por todos os outros que morreram e ainda vão morrer dessa
doença de transmissão tão rápida e ainda pouco compreendida. A dor dos doentes
e dos agonizantes mescla-se à minha, e todas se somam num único sentimento”
(Rocha, 2020, p. 153).
Nenhum luto é igual a outro, cada um tem uma tonalidade nos diferentes momentos vividos. Não é que ele passe, é uma ferida sempre aberta, às vezes mais dolorosa, às vezes mais apagada, mas ela está lá. O luto é nosso pão cotidiano.
Referências
AZEVEDO, Carlito. Monodrama.
Rio de Janeiro:7letras, 2009.
BARTHES,
Roland. Diário de luto. Tradução de
Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:Martins Fontes, 2011.
FORTUNATO,
Clarice. Da vida nas ruas ao teto dos
livros. Rio de Janeiro:Pallas, 2020.
ROCHA,
Rosângela Vieira. O indizível sentido do
amor. São Paulo:Patuá, 2017.
________.
O coração pensa constantemente.
Cajazeiras (PB):Arribaçã, 2020.
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