UniVerso de Mulheres 12 - A voz da selva na poesia de Sandrinha Barbosa, por Valeska Brinkmann
UniVerso de Mulheres 12
Foto © Luciana Frazão
A voz da selva na poesia de Sandrinha Barbosa, por Valeska Brinkmann
Eu selvagem
selvagem
como as pedras
não polidas e intocadas
selvagem
como o fogo
o sol do meio-dia
e as grandes tempestades
selvagem
como os terremotos
maremotos
secas e enchentes
selvagem
como a pororoca
amazônica
que em sua passagem
arrasta o tudo e
o todo
selvagem
como a febre alta
como a ferrada de arraia
e o choque do puraquê
selvagem
como a noite sem fim
sem luz e
sem som
repleta de pesadelos
selvagem
assim eu sou assim estou
seria uma certeza ou auto-defesa?
não sei explicar
mas por alguns instantes
ao deixar a selva
encontro vocês:
amigos fiéis
que tanto falam, brincam e sorriem
em seus olhos
quanta esperança
firmeza e carinho
traduzidos a mim
selvagem
em jeito de luta
persistência e não desistência
o oxigênio
a segurança
a brisa morna
que toca em meu rosto
eu, selvagem!
§§§§
Transe
porém … nessa noite não
nessa noite foi diferente
nessa noite vi meu espírito
no olhar assustado do caititu
no banzeiro e no repiquete dos rios
no leite branco da seringueira
no alto da pupunheira
e no perfume da raiz do patchulin
vi meu espírito traquino e moleque
nos rastros da cobra grande
na magia sem fim da mamãe-da-água
e no boto (homem) cor-de-rosa
vi meu espírito arrastar guizos no rabo das cascavéis
despertar instintos ferozes de sobrevivência
no dorso dos felinos
nessa noite vi meu espírito
nas orquídeas e nas samambaias
nas canaranas dos igarapés
no canto suave e mágico do Uirapuru
e no voo silencioso das gaivotas
nessa noite
nessa longa noite
fui apenas eu:
mansa e selvagem
vivendo e sobrevivendo
dessa milenar Amazônia
Sandrinha Barbosa é descendente do povo indígena Xokó, originário do Sergipe, nasceu na Amazônia brasileira quando seu povo para lá emigrou. Aos 4 anos de idade foi iniciada na Pajelança pelo seu avô. Estudou medicina ocidental em Manaus e medicina natural em São Paulo. Vive em Kaiserslautern, na Alemanha, onde junto com o marido forma o Duo Igapó, projeto de música brasileira. Escreve prosa e poesia. Em 2019 publicou na Alemanha o livro de poemas Igapó, pela BoD.
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