Divina Leitura | O tutano da experiência viva em "Jardim de ossos" de Marli Walker

 

Coluna 16


O tutano da experiência viva em 

Jardim de ossos de Marli Walker

- Por Divanize Carbonieri


Jardim de ossos de Marli Walker explora, como o título indica, a profusão de ossadas que vão se produzindo na vida de uma pessoa ao longo do tempo. O principal campo semântico a ser trabalhado é o do osso enquanto estrutura que se forma em torno da subjetividade conforme se acumulam as experiências vividas: “é como tatear um recife de corais/(exoesqueleto calcário)/sob o sal das águas do meu tempo”. Todos os seres humanos que alcançaram algumas décadas de existência forçosamente apresentam certa couraça de proteção construída pelo acúmulo de desilusões e perdas. A fossilização dos afetos, pelo menos em certa medida, é necessária à sobrevivência e também inevitável.

A própria linhagem parece ser vista como uma espécie de andaime em que aquela que está viva se reconhece como alguém que está no nível mais alto (ou talvez mais próximo à superfície) apoiado nos ombros daquelas que lhe antecederam: “meus ossos minerais/carregam várias mulheres/sinto-as todas/(antigas e constantes)/sobre a coluna cervical”. As ancestrais são as vértebras que sustentam, umas sobre as outras, a estrutura do ser, mais uma vez feminino, que agora anda sob o sol. Mas essa não é uma herança fácil de carregar porque muito da dor que acometeu as antecessoras continua em sua descendente: “são tantas mulheres/em meus ossos paleolíticos/tantos detritos/tantas noites em claro/tantos partos e perdas/o leite empedrado no seio/de todas elas em mim”.

Não só o indivíduo se assenta sobre estruturas arcaicas e cristalizadas. O amor também se torna um resquício endurecido e escondido no interior da bolsa de sentimentos guardados: “uma saudade antiga/alojada bem no fundo/o esqueleto de um amor/algum farelo de osso”. Ao mesmo tempo em que o esqueleto denota a morte desse amor, ele sinaliza a sua continuidade no tempo, uma vez que o osso é aquilo que permanece depois de todo o organismo se decompor. Talvez não seja mesmo possível se livrar completamente de todos os amores perdidos; algo de sua substância está sempre presente e se mistura ao cimento usado como base de sustentação para o edifício de uma consciência humana.

O contato precoce com a realidade da morte molda os primeiros tijolos dessa construção: “quando menina (quase adolescendo)/designaram-me a tarefa de matar/a galinha escolhida deveria ser morta,/[...] eu, sozinha a um canto da mesa,/engolia em seco o gosto do espanto/[...] (um assassinato premeditado requer/alguma frieza que eu ainda não tinha)”. O endurecimento em tão tenra idade, causado pelo ato de matar para garantir a subsistência do grupo, terá ainda serventia depois, quando, na vida adulta, é necessário realizar doloridos cortes: “ontem, sobre a mesa da cozinha,/estrangulei um amor”.

Mas por baixo da carapaça existe uma vida subterrânea, mais fluida e, ao seu modo, também resistente: “o peso da estrutura/recai sobre a ossatura/da outra vida/(submersa e líquida)/aquela que insiste/teima a vida inteira/(como sobrevida)”. Ainda que o recheio do ser sinta o peso da armadura fossilizada, ele jamais se entrega, prossegue correndo internamente e irrigando o repositório da criatividade da poeta. A partir dessa fonte, Walker examina seu processo artístico: “sou presa fácil/para este poema/caio no laço de/uma palavra solta/(flerto com outra)/finjo um breve revoar”. O estado de poesia a arrebata como uma águia a um roedor e tanto pode libertá-la quanto devorá-la viva. O fenômeno poético pode se realizar ou não, independentemente de sua disposição ou esforço.

Também é impossível, para a poeta, escapar ao contexto político de seu tempo, e as preocupações de ordem macro se imiscuem ao universo doméstico. É para a mãe, essa interlocutora antiga (não seria a primeira?), que se confessa a apreensão pelo presente e futuro: “minha mãe me conforta/ (ao telefone)/pede que eu tenha fé/diz que tudo vai passar/ que já viu muita coisa”. A confiança da mãe na inexorabilidade do tempo se apoia no maior número de anos vividos e reforça a ideia do caráter mutável de todas coisas, que não permanecem para sempre iguais. O mal há de se acabar, assim como o bem, numa roda da fortuna constante. Mas, para a voz poética, mais próxima do presente e com menos passado acumulado, tal tranquilidade é inapreensível: “este século começa mal/(há um tenso movimento/para as trevas, mãe!)”. Ainda que se saiba que tudo é impermanente e cíclico, a angústia de estar diante de um desastre social iminente não pode ser tão facilmente esquecida.

A percepção da morte volta a rondar o espírito, mas dessa vez se trata de algo maior, de uma sensação coletiva de aniquilamento prestes a se realizar: “a face do espectro/vigia/a miséria humana/a besta vingativa/arfa”. O mundo que se conhece corre o risco de desaparecer, e a culpa é da própria humanidade, que atrai sobre si “a besta vingativa” do destino, implacável para aqueles que se embriagam de húbris. Ainda que pareça recear não ser capaz de alterar tal estado de coisas, a poeta recusa-se a se calar: “mas não morrerei engasgada/com pedaço de osso/atravessado na glote/não sou mulher de recados/usar meu repertório/é ação que me compete”. Se a destruição realmente sobrevier, pelo menos o que está entalado na garganta será posto para fora, atividade que é sentida como própria das poetas.

Em seus livros anteriores, Pó de serra, Águas de encantação e Apesar do amor, Walker incluiu, no universo poético, a experiência de migrantes no norte de Mato Grosso. Em Jardim de ossos, a paisagem se altera, transubstanciando-se na capital do estado, que desperta, por sua natureza, sensações ambíguas: “aqui nesta terra quente/no centro do continente/o céu nem sempre derrama/a tormenta que ameaça/às vezes é um ‘Deus nos acuda’/(o estrago é grande)/às vezes é alarme falso/(tudo segue como antes)”. Tempestade e calmaria são suscitadas por esse cenário, que não parece proporcionar um meio-termo entre extremos. O calor intenso da época da seca frequentemente não é mitigado por chuvisco algum, e a ameaça de qualquer temporal só se realiza numa cascata de suor: “numa tarde de agosto/quando um céu de chumbo pesa/sobre mim/escorre entre meus cabelos/não me envia um pingo de chuva”.

Jardim de ossos reúne poemas de síntese poética perfeita, revelando o domínio de Walker sobre as ferramentas de seu ofício. São compostos por versos sucintos, mas plenamente suficientes, elaborados com precisão e potência. Lirismo e indignação se misturam nessas composições, produzindo nas leitoras a sensação de estar diante de uma voz poética que vivencia, nos fatos cotidianos, o peso de estruturas muito maiores e de consequências coletivas incalculáveis. A ossatura de nossa atualidade difícil é escavada e exumada nesse jardim de poemas irretocáveis. Quem colhe tais ossos em forma de palavras há de ver racharem as próprias fossilizações, expondo o tutano de uma experiência viva.


Apoio: Marinete Luzia Francisca de Souza, Monica Maria dos Santos, Wesley Henrique Alves da Rocha, Francielly L. Rodrigues da Silva.


Jardim de ossos pode ser adquirido na loja da editora
(https://www.carliniecaniato.com.br/)
ou diretamente com a autora nas redes sociais



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