De Prosa & Arte | Pétalas e Orvalho


Coluna 27


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Pétalas e Orvalho

Sem pudor, sem métrica / Sem plano, sem regra / Corpo e Alma / Tateando desejos bicolores. Guiga Preta



Dia desses, parti numa busca por elementos da flora que encontrei na janela vizinha. Numa manhã qualquer aquilo que parecia um bulbo e se assemelhava a um figo no pé, era anúncio de um cacto em flor. Eu ainda não sabia.


Da minha janela eu só via o bulbo pendente para o lado de fora. Naquele dia, esqueci de retirar a câmera do estojo e registrar aquele curioso despertar no vaso na varanda de frente.


No dia seguinte,  perto do mesmo horário, ao sair na janela me surpreendi com aquela explosão em pétalas... aquelas peças florais carnudas, aveludadas, sedosas e com pistilos proeminentes. Tinha uma cor próxima ao marrom arroxeado. 


Uma flor de cor tão análoga a outras flores que em manhãs orvalhadas, desabrocham em seu leito envolvendo os estames. Confesso que aquela flor curiosa, em formato de estrela de cinco pontas me empurrou a pensamentos cheios de lascívia. Fotografei.

 

Curiosa que sou, fiz uma pequena incursão aos conhecimentos botânicos que me relembrassem esse processo assexuado de florir na natureza. Passei a manhã criando verossimilhanças entre a reprodução assexuada das flores e o prazer feminino. 


Bem, fiz isso de forma simbólica, comparando um beija-flor em seu lépido bater de asas, “beijocando” os estames aquele filete através da qual os grãos de pólen se encontram. Uma abelha planando sobre uma flor, repousando na corola, zumbindo e criando extensão de vida. Uma borboleta faceira pousando lá e cá, e descansando seu bailado aéreo no miolo, espalhando pólen de flor em flor. E as sensações que podemos descobrir em minuciosos passeios íntimos em carreira solo.


Me vi inebriada, imaginando como a natureza de todas as coisas têm formas delicadas de (re)existir e se perpetuar numa eterna codependência. As flores coloridas em suas geometria radial e sobreposição de pétalas em dado momento da existência entram em sua maturação e tratam de atrair esses pequenos seres polinizadores com seus feromônios... e de pouso em pouso eles carregam e se encarregam de fertilizar e fazer florescer. Mas nem sempre precisa ser assim conjugado. Deleitar-se da maciez das pétalas, do orvalho que repousa sobre elas. Do cheiro que a flor e o orvalho produzem também o vale.


Como as flores são mulheres. São camélias, açucenas, begônias, amarílis, gerânios, amor-perfeito, orquídeas, acácias, brinco-de-princesa, copo-de-leite, gardênias, dálias, gérberas, jasmins, girassóis, hortênsias, magnólias, cravos, narcisos, papoulas e rosas. Às vezes delicadas, outras robustas, de muitos aromas, formatos e cores, instigando olfatos, exalando, amadurecendo, desabrochando em cachos, pendentes, num galho só - única, ou bouquets. 

 

Não quero aqui romantizar a existência feminina, tecendo esse fio de semelhança entre as flores. Mas naquela manhã, o cacto em flor era eu. Espinhosa, mas aveludada, marrom arroxeada, no desabrochar noturno, pra ser vista nas primeiras horas da manhã.


Ultimamente, sinto prazer nessa redescoberta de brotar de minha casca grossa, como aquele bulbo pendente de um cacto e de agradecer os deságues das minhas folhagens suculentas, da mania de florir no árido. Talvez seja a ânsia de trocar com quem tenha a delicadeza de tratar rosas rubras, de besuntar segredos líquidos entre as minhas pétalas. E porque não eu ser esse afeto? Assim, me desnudo. Aprendo a lidar com os lutos da semeadura e da colheita.


Tem horas que me pergunto:  - Como posso estar sempre alinhavando um assunto qualquer a essa minha libido florida?

Ainda não tenho essa resposta. Mas pensar numa flor de cacto recém aberta foi mitigando meus excessos, medos e angústias daquele dia.


Confesso, que no terceiro dia corri à janela pra encontrar meu eu-flor-de-cacto.

Descobri que aquele primor único e aveludado, era flor de pequena temporada, aponta num dia, desabrocha noutro dando um espetáculo inusitado e esmaece no dia seguinte.


Então, volta a ser só cacto espinhoso e orvalhado à espera da próxima floração.



Foto by @guigapreta




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