Prosa Poética | O Espelho, por Jeane Tertuliano

 

|Coluna 04|

A existência é uma flama. Já concebeu a possibilidade de o agora ser o grand finale da sua vida? Eu aposto que não. A práxis moderna consiste irrevogavelmente em experienciar com gana o regalo do presente em vez de contemplar calma e conscientemente a seriedade intrincada na liquidez da nossa brevidade. O que você enxerga / sente ao demorar-se defronte o espelho, encarando a si mesmo enquanto transborda na pequenez da imagem frivolamente refletida? Para o ser humano, é tipicamente difícil exercer autoanálise, e, até certo ponto, é compreensível. A crueza da realidade tende a ser uma faca de dois gumes àqueles que há muito vêm se negando a lidar com a lógica existencial.


Uma vida repleta de quimeras não renderá bons frutos a ninguém. Permitir que a ilusão o faça de joguete é uma das piores coisas que um indivíduo pode cogitar fazer. Feche os olhos e mergulhe sem hesitar na escuridão por detrás das tuas pálpebras, não se acanhe! Adentre o âmago e se achegue à essência, desnuda. Entre as fendas sinuosas, há um negror mais obscuro que as trevas, não o tema! Lá, o ignoto está a te esperar, e ele te conhece tão bem que sabe o quanto é temível a manifestação do outro eu. Mediante tal situação, cabe a ti, a mim e a todos, nos desvencilharmos inteiramente dos preconceitos, senão haverá uma imensurável colisão entre o eu e o alter ego. Há quem fique ensandecido após o avistamento inerente de si mesmo.


A vulnerabilidade do homem é uma piada, e ai de quem ousar zombar dela! A criatura desprovida de humanidade construiu armas por não saber fazer uso do verbo adequadamente; achando infinitamente vantajoso calar quem toma por nêmesis. Oposição é crime, o deus todo-poderoso (o homem autoproclamado perfeito) condena heresias, logo, é relevante erradicar o que difere de si. O bicho-homem não se afeta com afeto, mas se sente em êxtase quando o bajulam, pois não saberia suportar o peso da existência sem frequentes afagos no ego que, de tão inflado, pode estourar o pouco juízo que lhe resta. O ser, que não é sensível, carrega em si uma fragilidade cavalar: seu reflexo representa fraqueza, por isso, ele foge do dito cujo. O assassino mais sórdido não se equipara ao negrume da imundície que reveste a alma daquele que renega cobardemente a própria imagem no espelho.




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