Resenha 'afetiva' do livro O VOO DA GUARÁ VERMELHA, de Maria Valéria Rezende


(capa do livro 'o voo da guará vermelha')

O AMOR FEZ NINHO NAS ASAS DA GUARÁ VERMELHA

(por Nic Cardeal)

"(...) que o amor não é assim, o amor é como menino que não sabe fazer contas nem de perda nem de ganho, vive desacautelado, não tem lei, não tem juízo, não se explica nem se entende, é charada e susto, mistério (...)" 
(Maria Valéria Rezende, 'o voo da guará vermelha', pág. 60)


Em O VOO DA GUARÁ VERMELHA (Rio de Janeiro: Alfaguara/Objetiva, 2014, 2ª ed.), Maria Valéria Rezende conta a história de um sentimento genuíno, marcado pela dor e desesperança, resistência e fragilidade, na miséria revelada por seus protagonistas, dois anônimos perdidos no meio da multidão da cidade grande, que se descobrem pertencentes ao mesmo [e verdadeiro] sentido do amor, da recuperação e da possibilidade – ainda que efêmera e tênue – da felicidade. Os dois se cruzam por um 'suposto' acaso, que salva e transforma profundamente suas vidas: 

Rosálio – um homem do sertão, órfão de pai e mãe, analfabeto, de vida dura e sem esperanças, que trabalha como servente de pedreiro, buscando melhores condições de vida na capital, e com o sonho de aprender a ler e escrever. 

Irene – uma prostituta do norte, que se estabeleceu na cidade, onde acabou contraindo aids e não tem muito tempo de vida; que sabe ler e escrever, mas precisa aprender a ter esperança e acreditar outra vez no ‘humano sobrevivente’ da civilização. 

Trata-se de uma história peculiar, onde se recortam, enovelam-se e se costuram, nas narrativas dos encontros entre Rosálio e Irene, muitas outras histórias de personagens 'desconhecidos' que cruzam os caminhos do homem do sertão, em suas andanças pelos vários ‘fins de mundo’, antes de aportar na capital.

A personagem Irene tem muita sede de vida, mesmo sabendo que essa lhe escapa dia a dia, cada vez mais rapidamente. Segue a rotina do prostíbulo, pois precisa dar sustento ao filho que está aos cuidados de uma velha senhora. Rosálio, por sua vez, saiu do seu povoado ainda moço, com uma caixa cheia de livros, em busca de aprender a ler e escrever. Percorreu muitos lugares, viajou [e sofreu] ‘mundos’, viveu em florestas no trabalho escravo, no garimpo com rio envenenado, na caatinga, com suas festas populares, sanfona e zabumba. No acaso do destino essas duas vidas se cruzam para um objetivo comum: ela quer muita vida ainda, apesar de estar por um fio; ele, com tanta vida a ser vivida, só quer mesmo o direito de saber ler e escrever. E assim, a palavra é o fio mais precioso que os une e que os levará ao sentido maior do amor.

No tecer dessa trama fascinante, as cores aos poucos se definem detentoras de profundas emoções pelo olhar da autora, como se precisasse uni-las num único prisma da existência, capaz de provar ao mundo que, até alcançar o ‘azul sem fim’, a ‘guará vermelha’ haverá de perceber todos os matizes e nuances do sofrimento humano. Talvez, por isso mesmo, os capítulos sejam demarcados em cores de realidades internas e externas, porque cinzento não é apenas o concreto do asfalto ou das construções enormes na cidade de pedra, areia e brita, mas também o coração faminto de alma, de palavras, de sentimentos, de humanidade. No olhar de Rosálio, essa fome está sempre acesa – o homem sem letras, que andou por caminhos à procura de gente que lhe dissesse das gentes, dos povos, dos mundos dos livros; o homem do feijão e do cimento, da água da bica e do jirau, o homem das perguntas, das tristezas, das buscas, que tem fome dos vivos e encarnados. No coração de Irene essa fome é de mais vida nas veias, ao menos um pouco mais de vida, porque a 'mulher da vida' está cansada – a mulher que entrega o corpo por algum trocado, a mulher que não dorme porque não pode perder freguês, não pode se dar ao luxo de descansar alguma vez. Até que avista o homem da caixa: “(...) vai ver é da roça, recém-chegado, daqueles ainda com cheiro de terra e mato, novo, inocente, não custa tentar, inocente, vai pensar que camisinha é agrado, modernices de puta esperta, vem, meu bem, vem” (pág. 13).

Rosálio, sobrevivente. Irene, só vivente. Rosálio quer palavras, ouvi-las, dizê-las, trocá-las, Irene só quer dormir – se pudesse, apenas dormiria. Depois das coisas do corpo, o preço, a paga. O homem sem dinheiro, a mulher sem o que levar para a subsistência da velha e do seu menino. O homem da caixa, do bodoque, do pião e dos livros velhos cheios de palavras. A mulher que faz o homem se lembrar da guará vermelha [a mulher frágil como um vento soprado e sozinho]: “(...) de pernas longas e finas como caniços, que ele uma vez encontrou enredada nos galhos de um espinheiro, as penas ainda mais rubras, tintas de sangue, que ele soltou e quisera curar mas que, descrente, arisca, fugiu dele para, quem sabe?, sangrar até morrer, sozinha, desamparada naquele ermo tão longe dos mangues de onde viera (...)” (pág. 16). O homem que a acalma nos braços, contando por alongadas palavras, as suas idas e vindas pelos ermos, contando da tristeza da guará vermelha. “(...) Conta, homem, conta mais, é cedo para ir-se embora, nem o dia clareou, enquanto durar a noite conta, conta para eu sonhar (...)” (pág. 17). A mulher que adormece e sorri, o homem que levanta de mansinho, largando as pedras para marcar o caminho, e um coração que já sabe voltar, que já sabe amar.

Rosálio vai embora, mas depois volta – volta quantas vezes forem necessárias, até o voo (final?) da [sua] guará [vermelha]. Com o coração [vermelho] de amor por palavras, volta depois do cimento e da areia, do feijão e das mãos exaustas. Irene, ora vestida de encarnado, às vezes de verde, de roxo ou bonina, a mulher triste que já consegue dar um sorriso de esperança. Enquanto espera, pega o caderno, o lápis, a borracha – não pode esquecer de nada. “(...) A história da guará vermelha. Enche as páginas com a letra caprichada das aulas de caligrafia e as palavras que lhe presenteou o homem (...)” (pág. 20). Rosálio, o homem que deseja desvendar, uma a uma, as letras negras dos livros da caixa, quer contar suas histórias de toda a vida. Irene quer ouvir – e escrever. 

Conhecer Irene e Rosálio é conhecer os personagens reais, quase invisíveis, discretos, descritos em suas misérias individuais e coletivas, que vivem anonimamente nas grandes cidades, vindos de todos os cantos do país, procurando por melhores oportunidades de sobrevivência e em busca de realizar sonhos, às vezes [ou quase sempre] praticamente impossíveis. Os sentimentos e as percepções dos dois protagonistas se destacam na narrativa do romance, parecem muito mais importantes do que as próprias narrativas dos fatos, pois é por meio das suas emoções que a história se desenrola – elas são o elo fundamental que cria toda a energia do livro, que percorre todos os capítulos, sempre emocionando profundamente quem o lê. Rosálio, que sonha 'viver lendo [e contando!] livros', e Irene, que quer despistar a morte e viver um pouco mais, porque agora tem no amor o melhor motivo para viver. A vida de um sendo escrita pela outra, as vidas de ambos sendo unidas nas narrativas do contador das histórias – porque "a vida mistura tudo e quem quiser separar não vive nada que valha" (pág. 64). Rosálio, que resolve morar de vez com Irene, e ela sabe que dessa vez, quando ele chegar, será para ficar. E ele chega, porque “(...) vai agora todo dia para a praça vender sonhos, solto como um passarinho que só canta quando quer (...)” (pág. 126). Enquanto eles caminham pelas ruas, Rosálio vai percebendo que a cidade não é só cinza, mas tem todas as cores que se pode imaginar, ele vê de tudo, percebe que até na cidade tem muita vida, porque há muita gente com tantas histórias para contar, ou ouvir! 

De fato, o livro é sobre o encontro de duas pessoas que aprendem a partilhar suas misérias através da escuta e do aprendizado da palavra e, antes que o sonho acabe [abruptamente!], conseguem se sentir incrivelmente ricas no amor mútuo! Essa é uma história de vida, de sede de vida e, definitivamente, não há como passar ileso à leitura! Fui pega de roldão: chorei várias vezes, no intenso percurso de ‘o voo da guará vermelha’!


(fotografia do arquivo pessoal da autora)

Maria Valéria Rezende nasceu em Santos/SP, onde viveu até os 18 anos. Em 1965 entrou para a  'Congregação de Nossa Senhora - Cônegas de Santo Agostinho'. É escritora, tradutora, formada em Língua e Literatura Francesa e Pedagogia, e mestre em Sociologia. Dedicou-se à educação popular desde os anos 1960 em várias regiões do Brasil e no exterior. Viveu em Pernambuco e depois na Paraíba, no meio rural, até 1986 e, a partir de então mora em João Pessoa.

Livros publicados: 'Vasto mundo' (Beca/2001), 'O voo da guará vermelha' (Objetiva/2005), 'Modo de apanhar pássaros a mão' (Objetiva/2006), 'No risco do caracol'(Autêntica/2008, ganhador do Prêmio Jabuti 2009 na categoria infantil), 'Conversa de passarinhos - haicais para crianças de todas as idades' (com Alice Ruiz, Iluminuras/2008), 'Histórias daqui e d'acolá' (Autêntica/2009), 'Ouro dentro da cabeça' (Autêntica/2012, ganhador do Prêmio Jabuti 2013 na categoria juvenil), 'Hai-quintal: haicais descobertos no quintal' (Autêntica/2011), 'Quarenta dias' (Alfaguara/2014, vencedor do Prêmio Jabuti 2015), 'Outros cantos' (Alfaguara/2016, vencedor dos Prêmios Casa de las Américas, Jabuti 2016 e São Paulo), 'Histórias nada sérias' (Escaleras/2017), 'A face serena' (Penalux/2018), 'Ninho de haicais' (Casa Verde/2018), 'Conversa de jardim' (com Roberto Menezes, Moinhos/2018), 'Nas curvas do caminho, um menino diferente' (Caravana/2019), e 'Carta à rainha louca' (Alfaguara/2019), entre outros. 

É uma das principais idealizadoras do Movimento 'Mulherio das Letras'! 



Comentários

  1. O mulherio em movimento! Com vocês a literatura brasileira contemporânea tem outro ritmo!

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