Divina Leitura | Luz própria e ramas floridas em "Toda-Mulher-Vaga-Lume"
Coluna 18 |
Luz própria e ramas floridas em Toda-Mulher-Vaga-Lume
Toda-Mulher-Vaga-Lume
reúne poemas, micronarrativas e desenhos produzidos pelas autoras que integram
o Coletivo As Contistas. É um título intrigante, composto por uma espécie de
neologismo, uma palavra formada da aglutinação de várias outras. Qual a relação
entre escritoras e vaga-lumes? A nota introdutória se refere a esses insetos
como seres capazes de emitir luz própria, sendo que o “tecido que emite a luz é
ligado na traqueia e no cérebro”. A localização da bioluminescência nesses
órgãos do animal parece servir de analogia para a expressão verbal das poetas,
que combinam sons/significantes e conceitos/significados na realização do
fenômeno literário.
Contudo,
a palavra que inicia o nome criado surge talvez para alargar ainda mais a
prerrogativa da criação da luz própria: abrangeria ela a condição de toda
mulher que existe e resiste em um mundo que ainda insiste em submetê-la. Ter
direito ao autocontrole, à autodeterminação é o que almejam os seres humanos do
gênero feminino, assim como seus companheiros homens (da mesma forma que os
vaga-lumes controlam a geração da luminosidade em seus organismos).
A
coletânea conta com a inclusão de dezesseis autoras de textos e/ou imagens. E
todas participam com uma pequena, mas significativa seleção. Dessa forma, a
multiplicidade de temas, estilos e assinaturas é um dos pilares de sustentação
do livro. No entanto, obviamente existem pontos em comum, dados pela
especificidade da condição ou das condições femininas em um contexto ainda
bastante patriarcal.
Uma
das ressonâncias mais impressionantes é a questão da violência doméstica. No
poema “Cotidiano caos” de Claudia Angst, a voz poética se expressa na terceira
pessoa do singular, dando vida a uma personagem que visualizamos de fora, de
forma fragmentada, como alguém que percorre com os olhos os elementos que
compõem um mosaico, sem conseguir inicialmente apreender o todo: “bainha do
avental”, “nós dos dedos”, “circulação estagnada”, “olhos seguindo”, “caminho pelo
chão”, “o tom do cimento”, “cinzas também as ideias”, “caos”. Tal fragmentação
acompanha a desarticulação causada pela imposição da força: estamos vendo
alguém que perde sua inteireza em decorrência de ataques constantemente
sofridos. Mas o último verso parece oferecer um desafio: seria apenas uma
confirmação de alguém que tem a fala e a própria carne cortadas pelo primeiro
tapa recebido? Ou trata-se de uma desforra, em que o golpe aguentado se reverte
em reação que corta a fala e a carne do agressor?
Em
“Favor” de Giselle Bohn, há uma mudança de perspectiva dentro de uma
configuração temática semelhante. O eu lírico assume a voz de alguém que parece
se dirigir a uma pessoa (mulher ou homem?) que sofreu uma traição. Há um
julgamento e a incitação à violência: “Se fosse você já teria me vingado/Não do
desgraçado, que não adianta: dela”. Ao mesmo tempo, existe a sinalização de
pesos diferentes para julgar o comportamento de homens e mulheres: “Homem é
aquela novela, tudo igual/Nenhum deles presta, a gente sabe/[...] Mas mulher,
não: mulher é diferente/Tem mulher decente e tem puta”. Dessa forma, é possível
pensar que a voz que emite esses julgamentos ecoa, na verdade, o senso comum de
uma sociedade acostumada a perdoar mais facilmente os deslizes masculinos. O que
talvez seja surpreendente nesse poema é a renúncia à vingança daquela ou
daquele que ouve. Ela ou ele parece ter aceitado que pode aprender com a dor da
rejeição, algo que soa simples, mas que ainda é um objetivo distante a ser
alcançado por muitos homens na epidemia de feminicídios em que vivemos.
Já
em “Pão sovado” de Paula Giannini, o tema da violência se associa a uma certa
inovação formal, em que a narrativa curta surge no formato de uma receita de
pão. E o preparo do alimento se confunde com o tratamento recebido dentro de
casa, deixando em aberto se quem apanha é o pão ou a mulher que o prepara: “Um
soco a mais. O último. Terminou de amassar o pão. Agora era esperar crescer”. A
mulher que sova o pão (e que provavelmente também foi surrada pelo marido)
parece se submeter diligentemente à rotina de uma boa dona de casa:
“Arrastava-se junto à vassoura e ao calor. Varrer a casa inteira. Passar
esfregão. Encerar. Deixar brilhando”. O desfecho é, contudo, instigante, porque
revela uma ruptura: ela não irá mais se conformar a esse papel: “Quando ele
voltasse, ela já teria partido. Trabalhara duro. Nunca mais seria chamada de
vagabunda”.
Outro
tema importante, sobretudo num livro que faz parte de uma coleção intitulada
“Quem dera o sangue fosse só o da menstruação”, é o do sangramento. As mulheres
sangram, isso é um fato, mas quais seriam as razões e os sentidos que elas
associam a isso? Mais uma vez, as respostas vão variar de escritora para
escritora. Fernanda Caleffi Barbetta, em “Sangue-vivo”, refere-se principalmente
aos momentos em que ocorre a ausência do sangramento na vida de uma mulher:
“Pior/é quando o sangue/espesso, vermelho-vivo, quente, que eu
aguardo/mensalmente,/não vem”. A indicação de que essa é uma situação pior do
que outras (quando o sangue se faz presente) sugere que se trata de momentos de
crise: uma gravidez indesejada; a presença de uma doença física ou psíquica que
interrompe a menstruação; a menopausa, que, apesar de ser um processo natural,
muitas vezes lança a mulher num turbilhão de emoções, já que o valor que se
confere ao envelhecimento feminino tende a ser negativo em um cenário em que
ela é vista principalmente como objeto sexual.
Sandra
Godinho, no poema “A carne carmesim”, entende o sangramento como algo recorrente
na condição feminina, mas novamente não por motivos naturais: “Sangra a mulher
ferida/Sangra a mulher devassada/Sangra a que percebe a sangria do
abandono/Sangra a que rebenta por fora o fosso dentro”. Nesse sentido, o sangue
está associado ao sofrimento constante da mulher, que é ferida pela violência,
pelos insultos, pelo abandono, pelo desrespeito, pela negligência. A última
estrofe do poema, extremamente bela, faz com que essa ideia se complete em um
círculo perfeito: “Sangra,/porque sangrar é/o pranto/de uma mulher”.
Priscila
Pereira, autora de “Maternar”, também relaciona chorar e sangrar. Mas enfoca a
interrupção do sangramento em seu aspecto positivo: “O sangue que chorava
cessou/O útero antes vazio se preencheu”. A gravidez, quando desejada ou pelo menos
aceita, pode trazer uma nova dimensão para aquela que dará à luz. Isso não
significa, porém, que não seja um desafio: “O corpo criando outro corpo/A vida
se dividindo/O ventre expandindo/A mente se preparando/A dor rasgando/O amor
nascendo”. A maternidade não é vista, então, como algo idealizado, sempre
sublime e que corresponderia a um destino natural da mulher. Ao contrário, é
entendida como uma construção laboriosa, que pode tornar a mulher “Dividida/Mas
ainda inteira/Poderosa/Mas ainda frágil/Mãe/Mas ainda mulher”.
As
diferentes fases da vida também são examinadas de variadas formas nesta
coletânea. Em “Palimpsesto”, Elisa Ribeiro se concentra na velhice, etapa em
que as crenças sociais limitantes muitas vezes relegam a mulher à sensação de
que é tarde demais, principalmente para seus desejos. Mas a voz poética
plasmada nesse poema não está disposta a se render: “Finjo que acredito/e
escrevo com batom vermelho/sobre a data gravada no meu documento/um outro
tempo”. A mulher não precisa aceitar a condenação que lhe é imposta e pode ser
o sujeito de sua própria história, sendo senhora de seu corpo e de seu destino
em qualquer momento de sua vida.
Sabrina
Dalbelo, por sua vez, em “Uma mulher menina de 12 anos”, vai mostrar que
a puberdade, o período de transição para a fase adulta, pode ser igualmente
desafiadora para a mulher. A partir dessa tenra idade, as expectativas sociais
já são sentidas com todo o seu peso: “12 anos/E o sonho inventado de ser modelo
manequim/Ou até atriz”. O sonho de uma carreira não se torna uma vocação que
desponta, mas algo coagido, não para trazer a verdadeira realização, mas apenas
a ascensão financeira (daí a insistência da mãe, que vê a filha como o arrimo
para a família). Só que tal pressão pode levar à ruína uma jovem ainda não amadurecida
para lidar com as frustrações e tentações de um meio tomado, em grande parte,
pela futilidade. O procedimento de riscar algumas palavras dos versos,
mantendo-as ao lado de outras que seriam mais adequadas (para quem?),
acrescenta um caráter irônico e bastante doloroso ao poema, uma vez que as
ilusões de leitoras e leitores são rasuradas, assim como também serão as da
menina-mulher retratada.
“Mulher
adulta” de Fátima Heluany traz a esperança de que esses círculos viciosos possam ser interrompidos. Para
isso, basta que a mulher se torne consciente de sua própria força: “Mulher
adulta/chegou a hora de se mostrar/Levou um tempo, mas entendeu aonde deve
ir,/com o jeito doce/de quem sabe quem é”. O autoconhecimento é o antídoto para
cessar os efeitos nocivos das exigências alheias. Aquela que sabe quem é saberá
aonde ir, o que deseja fazer, deixando de ser um joguete nas mãos de outrem.
E
muitos são os poemas que enfatizam a necessidade de a mulher voltar-se para si
mesma. Evelyn Postali, em “Galeria de coisas”, expressa tal questão da seguinte
forma: “Observadora quieta de mim/Eu sigo de linha em linha,/Sou a palavra
acertada,/A vingança daninha./Nenhum esquecimento,/Nem silêncio, ou grito./No
labirinto que sou/Visto meu próprio infinito”. Por sua vez, Amana, no poema
“Redescoberta”, chega a uma conclusão semelhante: “Agora que vejo tudo isso/No
reflexo do espelho,/Finalmente aceito/Que aquela pessoa/Sim, aquele
alguém/refletido, sim,/Sou eu”. Conhecer-se, aceitar-se, observar-se, mirar-se
nos espelhos internos e externos, sem julgamento, mas com aceitação: esses são
os caminhos que as poetas indicam para suas leitoras em seus embates com
diferentes formas de opressão.
A
mulher que agir dessa forma passará pela mesma experiência evidenciada por
Anorkinda Neide, em “Mais de mil cores”: “Sentei comigo mesma e me pus a
conversar/e concluí que de um vasto arco-íris/sou multiplicidade em ação/sou
caleidoscópio de amor/sou vida em pleno ópio/vibração e torpor”. O êxtase de
poder contar consigo mesma faz as restrições estabelecidas pelos homens
diminuírem e a sororidade aumentar, como reflete Amanda Gomez em “Predadores”:
“Dentro de casa/Desde sempre/Vez em sempre/Seguir/Se permitir/Ao redor, algo
acontecia/Na luz ELAS surgiam/Nas sombras ELES desvaneciam”. Isso acontece
porque a inteireza não pressupõe a solidão completa, e aquela que se encontrar
em si ainda buscará a companhia de outras e outros que a auxiliem no próprio
crescimento, conforme bem lembra Renata Rothstein: “Eu —
sem lei — sobrepujo o tudo, o nada, a sorte, a posse./Sou silêncio, sombra e
sonho/Sou inteira — e não basto”.
Como
evidencia Juliana Calafange, em “Chuva branca”, é possível abandonar as
expectativas em relação aos outros e assumir o próprio caminho, com tudo de bom
e ruim que ele contiver: “É porque não posso mais/Esperar que amanheça/Que você
cresça ou vá embora/Ou que nos dê flores o jardim/Quanto mais corre o trem/Mais
reto é o trilho/Sou somente Só/É meu nome, minha sorte e meu declínio”. E,
assim, como aparece nos belos desenhos de Bea Machado, ramas floridas e
verdejantes brotarão da coluna, ventre, pescoço, membros e dedos de uma mulher
amadurecida dessa forma, contagiando a todas e todos com sua vitalidade. Tal é
a transformação que a leitura de Toda-Mulher-Vaga-Lume pode proporcionar
para aquelas que tiverem o coração aberto.
Apoio: Marinete Luzia Francisca de Souza, Monica Maria dos Santos, Wesley Henrique Alves da Rocha, Francielly L. Rodrigues da Silva.
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