MulherArte Resenhas 12 | Prefácio ao livro "Chão Batido" de Juçara Naccioli - Por Cristiane Sobral

 


Prefácio ao livro Chão Batido de Juçara Naccioli 

- Por Cristiane Sobral


Caro leitor, escrever não é labuta fácil. O poema tem identidade, nasce, mas ainda não está pronto, percorre o caminho único da criação. Publicar no Brasil também é estrada íngreme. O convite para escrever um prefácio é algo que assombra um pouco. Sempre novo e único falar sobre autores e o processo de tornar-se poesia.

Palavrear não é ato isento, as palavras curam, ferem, transformam. Desacredito em coincidências no encontro entre a autora e a prefaciadora, quiçá parteira a anunciar o corpo livro. Esse encontro é marcado considerando a intuição e a força do inconsciente coletivo.

Sempre destacarei a emoção e a razão como elementos indispensáveis para a construção de um poemário singular. Chão Batido me fez tremer as pernas pela oportunidade de revelar a alta literatura e suas especificidades. Esse livro nasce como um marco, presente referencial para o universo das letras. O poema é flecha certeira, não é exercício para caçador desavisado.

Traçar linhas nessa obra, escrita por Juçara Naccioli, mulher negra, nordestina, que vive em Cuiabá - MT, poeta, atriz e professora de linguagem, é motivo de muita alegria. O livro é eterno, forma de resistência e anunciação de outros tempos linguísticos. Em tempos pandêmicos, a poesia pode ser um caminho para a ressignificação das nossas humanidades.

Juçara deixa sua marca indelével no decorrer das páginas, com uma poíese linguagem, que escreve na tela dos sentimentos, está assentada na estética, atravessa o racional e afeta de forma concisa quem lê. Poetar é produzir uma trama fechada cujo alvo é o leitor. São letras, frases, letramentos alfabéticos ladeados por saberes outros, fonemas da oralidade em pretuguês, como já disse a militante negra, professora e feminista Lélia Gonzalez.

Outro destaque está na subjetividade apresentada em Chão Batido, no eu lírico da preta velha, benzedeira e griô tecido com inteligência, generosidade, receitas e acolhimentos. Nas páginas, encontraremos também a narradora, elemento reflexivo e estratégico na criação. São personagens com contornos de humanidade muitas vezes não revelados pela literatura brasileira, majoritariamente composta por escritores brancos, homens e sudestinos.

A autora também produz ricas apostas semânticas e maneiras de conjugar a língua e a linguagem em caminhos criativos outros, espaços geográficos, organizações comunitárias a revelar o português brasileiro em sua diversidade.

Com muita emoção li e reli essa obra que agora apresento, texto basilar repleto de originalidade e da simplicidade tão difícil de expressar em qualquer campo artístico e por isso mesmo tão preciosa.

O livro contém poemas que remetem à ancestralidade, ao matriarcado próspero e sua força de cura e renovação, ao universo campesino, aos mais velhos e mais velhas e sua sabedoria tradicional, pilares da cultura nacional.

Um exemplo dessa escrita patuá:

 

Lavanda

agora que ele acarmô podi ir

vá pa casa

cuidá do seu bichim

tome essas lavanda

coloque imbaixo do trabissero dele

vai dexá bacuro tranquilo

e até ajuda a prefumá

e num vai esquecê

amanhã bem cedo

tem que tá aqui

antes do sór raiá

pa nega benzê

num pode passá da ora

agora vão pa casa minha fia

com Deus e Nossa Sinhora

 

Necessário destacar nesse poema as receitas da medicina tradicional, os caminhos de proteção individual além da lógica cartesiana. Os segredos maternos, os preceitos na dureza de manter os filhos vivos em uma sociedade com tantas assimetrias sociais.

Vejamos o poema “Corpo Fechado”:

 

Corpo fechado

[...]

como faz pra corpu fechá?

num é assim

pa tê corpu fechadu

tem segredo

Deus em primeiro lugá

a dipois um patuá

[...]

 

Seria o livro um patuá? Um salvo conduto transformador? A mandinga está nas letras, na sonoridade, nos sentidos alargados pela poesia bem orquestrada de Juçara como contas de terços matemáticos nas rezas, o texto também tem regras e ensaios.

A poeta aqui apresentada, em sua profícua construção, revela ainda a cruel exclusão de corpos femininos e negros minoritários no mercado editorial. Também resiste, com essa publicação, com sua voz geograficamente assentada no Centro-Oeste, no combate aos preconceitos linguísticos do cânone.

Entre e sinta em cada página, a fruição que pode levar o leitor a estradas de mudança: não existe unidade linguística no português falado no país, eis aí uma grande riqueza a ser anunciada. O livro é o protagonista da criação literária.

Convido à reflexão: a gramática também tem sido usada como forma de poder e controle. Linguagem é uma forma de comunicação. Os saberes populares e suas construções linguísticas cumprem o seu papel comunicador. A poesia em Chão Batido contém um amplo espectro sensível de criação, construção, desconstrução e reinvenção de linguagem.

O futurismo na literatura de Naccioli começa pela revelação da antiguidade como posto, em performances poéticas textuais que brincam com a noção de tempo, espaço e lugar. É hora de colocar os pés no chão e difundir os saberes das nossas terras a partir de outros pontos de vista. É tempo de aprendizado, de abertura para outros conceitos por meio da aquisição de obras com outras concepções linguísticas, aí surgirá um campo amplo e vasto na literatura nacional.


Chão Batido (2021)
Editora Cálida
Para adquirir com autógrafo, entrar em contato pelo zap da autora: 65 99222 9623 



Cristiane Sobral é carioca e vive em Brasília. Multiartista, é escritora, poeta, atriz e professora. Bacharel em Interpretação e Mestre em Artes (UnB). Licenciada em Teatro. Especialista em Docência. Professora de Teatro da SEEDF. Tem 09 livros publicados, o mais recente: Dona dos Ventos. Em 2019 foi jurada do Prêmio Jabuti, categoria contos. Em 2020 criou o selo editorial Aldeia de Palavras e o projeto Curso de Escrita Criativa, com 11 turmas, mais de 150 alunos e 2 publicações: uma antologia de contos, Águas de Ilê, e uma de poesia, Ilha de Palavras, com poetas de São Tomé e Príncipe e textos em português e criolo.



Juçara Naccioli é graduada em Letras - Língua Portuguesa/Literatura e especialista em Teoria e Prática da Língua Portuguesa, ambas pela Universidade Federal de Mato Grosso. Atua como professora de Linguagem há mais de 25 anos, é poeta, integrante do Coletivo Literário Maria Taquara - Mulherio das Letras - MT e do Coletivo Parágrafo Cerrado. Foi finalista do Prêmio Off Flip 2019 na categoria Poesia. Atua também no teatro e audiovisual mato-grossenses. Chão Batido é seu primeiro livro, tendo sido selecionado no Edital da Lei Aldir Blanc do Estado de Mato Grosso.




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