A Face da Divícia | Um Náutilo
Coluna 03 |
Um Náutilo
- Por Divanize Carbonieri
Quando
ele surgiu do éter, eu já estava conformada com a minha situação. Tinha
desistido de espernear e gritar por socorro. Ninguém iria me ajudar mesmo. Talvez
fosse a palermice depois de tanta picada. O fato é que não me assustei com a
sua carranca esverdeada boiando no ar. Afinal, não deixava de ser uma bela cor,
igualzinha àquela do gramado em frente. Só achei insana a recomendação que me
prescreveu. Mas quem era eu para julgar? É mister que Vossa Senhoria ingira
quarenta copos de água a cada rada do
dia. Primeira vez que se dirigem a mim com tal reverência, e o que vem a ser rada, meu Deus do céu? Isso nem falei em
voz alta, mas ele já foi logo respondendo porque o danado ouvia pensamentos. Vinte
e quatro são as horas de um intervalo diário, que, divididas por quatro,
contabilizam seis. Cada um desses conjuntos constitui um rada. Hum, são dez copos por hora, não? Perfeitamente! Bastante
coisa, e quando eu estiver dormindo? Adormecer Vossa Senhoria não deve nesse
período de atribulações. Bom, antes de me enfiarem aqui, até era fácil não
pregar o olho. Mas agora, com esse monte de amansa-louco que estão me dando,
como fazer? O medicamento malsão não é para ser deglutido. Vossa Senhoria agirá
bem se ocultá-lo na cavidade bucal e cuspi-lo assim que se encontrar desacompanhada.
Em seguida, precisa proceder imediatamente ao consumo que estamos lhe indicando.
E isso tudo para quê? Não sabia que água limpava loucura. Ora, mas é evidente
que sim. Vossa Senhoria não se encontra versada nos atributos do solvente
universal? Antídoto criado pelas forças da natureza para diluir todos os males
que já existem e os que ainda serão forjados pelos seres humanos. Em breve,
estará plenamente recuperada e poderá retornar à ativa, bem distante daqui. Então,
assim transcorreram os eventos. Com a ajuda dele, passei a me esgueirar para
fora do quarto e subtrair água do bebedouro em quantidades estratosféricas. Se
não estava bebendo, estava urinando. Mas os enfermeiros viviam sobrecarregados
e, como eu não fazia mais escarcéu, não viram nada preocupante. Deram-se por satisfeitos
por não estarem tendo tanto trabalho. A felicidade que me invadia nem sei
nomear. As cores do mundo foram clareando e clareando. Os sons também começaram
a atingir frequências altíssimas, incapazes de ser detectadas por ouvidos
normais. Tornava-me uma espécie de ciborgue, com os sentidos aguçados à enésima
potência. Verdadeira super-heroína dos reinos aquáticos. Praticamente uma alga
fosforescente a deslizar num oceano cintilando ao intenso sol do verão. Um
náutilo de carapaça arredondada e raiada oscilando nas correntes que fluem pelo
organismo da Grande Mãe. Até que ao longe ouvi vozes que pareciam conhecidas. Seriam
sereias? Que roupa vamos colocar nela? Não, esse vestido é alegre demais para a
ocasião. Não trouxe outra opção? O tailleur preto, mas será que não vai ficar
com uma cara muito séria e envelhecida? Quero que as pessoas guardem uma boa
imagem dela. Coitada, tão nova! Por que diabos foi inventar de engolir um mar?
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