MulherArte Resenhas 13 | Posfácio ao livro "Carga de Cavalaria" de Divanize Carbonieri - Por Paulo Sesar Pimentel

 


Posfácio ao livro "Carga de Cavalaria" 

de Divanize Carbonieri

- Por Paulo Sesar Pimentel


“Eu não quero as réguas para traçar meus caminhos.

Eu prefiro as éguas, num galopar torto y veloz”

(Antônio Sodré)

 

“Pastora de nuvens, por muito que espere,

não há quem me explique meu vário rebanho.

Perdida atrás dele na planície aérea,

não sei se o conduzo, não sei se o acompanho”

(Cecília Meireles)

 

Como uma cavalgada, ler este livro é experimentar ritmos: frente a uma planície tão ampla, pode-se trotar, vagarosamente, degustando imagens pelo caminho, ou, num galope veloz, atravessar as distâncias que Divanize Carbonieri constrói. Esta obra, deste modo, fotografando em palavras que necessitaram ser selecionadíssimas, dadas as limitações do haicai, funciona igual a uma bula que ensina a sobre como olhar, no dorso de um cavalo, o mundo em movimento e, ao mesmo tempo, em pé, na beirada da floresta, as tantas possibilidades de liberdade.

Não nos enganemos, leitoras e leitores, em pensar que há um eu-lírico estático apenas descrevendo cenas em três versos. Olhemos um pouco mais detalhadamente, mesmo que isso ocorra após uma primeira leitura rápida (a qual, talvez, o livro nos force, dada nossa fome em atravessar pradarias muitas e eras diversas na companhia dos imponentes animais). O eu-poético, que transforma em fonemas o animal, suas representações e os sentimentos que se espelham em nós, produz uma poesia natural e simples e, ao mesmo tempo, tão complexa como a vida.

Se a poesia é um sopro divino, Carbonieri, nesta obra, transforma-a em um trotar pulsante. Talvez, aí esteja a razão pela escolha dos haicais. Esta forma poética, constituída por três versos, ao primeiro olhar, destaca a limitação: de palavras, de imagens, de recursos. É na aridez deste limitado gênero, contudo, que surgem as possibilidades. A poeta as explora, magistralmente, com domínio da técnica e com uma sensibilidade que nos permite reconstruir o primeiro momento, em que a primeira pessoa viu o primeiro cavalo solto nos prados e sonhou ganhar o mundo, com aquela velocidade, garbo e força.

Este domínio poético, presente em outras de suas obras, neste livro de haicais, prova que poesia é sempre possível, e que temas não se esgotam jamais. No entrecruzamento entre forma, gramática e sentidos, a professora, pesquisadora, poeta e contista demonstra a quem lê uma forma madura de literatura, que entrega a simplicidade, para apenas o fruir, mas, também, e embutido nela, a escrita de quem segura firme – e direciona com clareza – as rédeas da poesia, mesmo – reitera-se – numa estrutura poética tão limitada como o haicai.

Vemos isso, com clareza, em poemas como este:

 

zaino zombeteiro

zanza e ziguezagueia

zunindo no zéfiro

 

Leitoras e leitores que buscam o prazer da poesia, sem preocupações estilísticas ou estéticas, verão um poema leve, melodioso, brincando com a letra “Z”. Teóricas e teóricos da literatura, apaixonados e apaixonadas por sentidos ocultos, arqueólogos e arqueólogas das palavras e da semântica, contudo, para além desta aliteração, também verão os sons nasais, que fazem as palavras do haicai, lidas em voz alta, trotarem da boca ao nariz, e vice-versa, num movimento constante, forçado pelo fonema /z/ que atravessa o poema. Nesta articulação do aparelho fonador, posto em cada uma de suas partes para funcionar, temos o elo com os sentidos, que fazem com que, do chão aos céus, o cavalo se confunda com o próprio – e mítico – vento.

Numa tessitura leve, o leitor ou a leitora verá o cavalo ganhando asas, sempre neste movimento sutil de brincar com sons e imagens, com mitos e lembranças, com o aqui, o ali e o quando.

É do passado que vem a paixão desta poeta. Já na primeira parte do livro, encontramos o amor pelos cavalos, construído no pequeno olhar infantil voltado à imensa tela do cinema. Com as histórias de faroeste, Carbonieri alimenta esta epopeia equina, com indígenas montados em cavalos bonitos, com penachos, musculatura destacada e um mundo a se conhecer. Mesmo que em tantas destas narrativas os indígenas apareçam como vilões, a mente infantil, que alimentará, anos depois, estes poemas, constrói um olhar alternativo, amadurecido, mas mantendo tanta – ou toda a – ternura:

 

muito viril faroeste

foi visto na infância

cavalos do velho oeste

 

É deste universo que temos a pista do título:

 

nos despenhadeiros

carga de cavalaria

contra sioux lanceiros

 

O poder imagético, nestes haicais, é tão grande e dialoga de forma tão profunda com nosso imaginário que é impossível, mesmo que numa bruma difusa, não construirmos a cena fotografada no poema: cavalos enfileirados, indiferentes a tudo, em movimento, à beira de um precipício, com pedras estalando sob seus cascos e caindo na profundidade do abismo. Há que se notar, contudo, que, neste haicai, os equinos não aparecem diretamente. Eles estão pressupostos, carregando as cargas e os atores da cena: soldados, também implícitos, e os lanceiros sioux. Sua presença é ambígua, não tendo propriamente um lado, mas ocupando todo o espaço em seu movimento de conquista e ataque, fuga e resistência. Do mesmo modo, apesar do aparente tema único na obra, os “Haicais Encavalados” são um ponto de partida para se cavalgar por toda a vasta emoção humana, ora sugerida, ora explicitada.

É o que percebemos quando os papéis sociais da mulher aparecem. Há (e isto faz parte do universo poético de Carbonieri, que vai do prosaico cotidiano ao filosófico abstrato com uma rapidez e fluidez surpreendentes) um misto de mitos e performances históricas que se amalgamam e produzem múltiplos sentidos:

 

nesses bangue-bangues

mulher nem coadjuvante

de homens e mustangues

 

A figura da mulher, ao longo da trajetória da humanidade, posta como secundária, é destacada e é nesta contradição que reside a beleza do poema: ao se denunciar o secundarismo da mulher, transforma-se, ela própria, numa reescritura das já tão conhecidas narrativas de faroeste, em protagonista da cena, justamente por causar, num ímpeto a quem lê, o estranhamento de se perceber como se pode negligenciar, de forma tão sistêmica, um gênero humano.

Claro é que, em outros poemas, passeando por outras eras e culturas, Carbonieri mostra possibilidades de papéis, existências e histórias, como por exemplo, em:

 

e vinha a revanche

das lendárias amazonas

ei, helenas, avante!

 

Em casos como o do haicai acima, diferentemente dos que tratam de bangue-bangue, a figura feminina, confundida com a força e a altivez dos equinos, denuncia, de forma sutil e leve, o sectarismo de allgumas narrativas e a resposta, histórica e mítica, que a cultura humana sempre oferece.

Captadas estas nuances, Carbonieri não se furta a voltar os olhos – e a sensibilidade – à formação religiosa do Ocidente, ainda no movimento de, tendo cavalos por linha condutora, tratar de todos os temas que nos compõem. Sendo assim, a primeira mulher para religiões abraâmicas, vilipendiada em mitos de, pelo menos, três religiões, protagoniza um dos mais belos, fortes e necessários haicais deste livro:

 

as éguas e as Evas

vindas à vida sem freio

freadas pelo arreio

 

Mesmo correndo o risco de ser repetitivo, é importante chamar a atenção para a técnica, aliada à construção semântica, ambas geniais neste poema: a assonância de vogais abertas (/a/ e /e/), no primeiro verso, a aliteração de sons nasais (/n/ e /m/) e dos fonemas /v/ e /f/ no segundo verso dão fluidez e força à leitura. Este processo é interrompido no terceiro verso, seja pela repetição dos fonemas constritivos /f/, /s/ e /r/ e dos oclusivos /d/ e /p/, que, no último verso, articulam, sonoramente, a ideia de trava que às mulheres foi imposta.

A submissão – ou a tentativa de promovê-la – figura em outra seção de poemas, sempre criando uma relação com os anteriores, seja pelos cavalos, seja pelos temas destacados a partir destes animais. É o que vemos quando equinos e trabalho tornam-se a tônica dos haicais. O transitar de Carbonieri por culturas, mitos, povos e conflitos permite que vislumbremos, em vários momentos, um panorama de como a relação entre humanos e natureza reproduz a relação entre apenas humanos, numa dialética luta de submetedores e submetidos. Isto se metaforiza em momentos nos quais, do cavalo à representação do cavalo, há uma reiterada tentativa de domar, de controlar, ainda que se crie um simulacro de realidade:


no móvel carrossel

corcéis estão empalados

pela sela e dorso

 

À leitora ou ao leitor não passará batido o jogo de antíteses, sugeridos por vocábulos cuidadosamente escolhidos que, fora de um determinado contexto, não seriam contrários: “móvel” e “empalados”; no primeiro, temos uma associação imediata com a liberdade característica atribuída aos equinos na natureza e, no segundo, a ação humana – e cultural – violenta e brutal. A realidade simulada nos carrosséis, então, se estende às tentativas de domínio sobre a natureza, que é seviciada aos desejos humanos, tornando-se meramente uma lembrança do que fora, do que poderia ter sido.

Seguindo o invisível fio que conduz esta obra, a presença de cavalos na formação regional do Brasil também é, por Carbonieri, poetizada. A forma como, contemporaneamente, regiões como o Centro-Oeste e o Sul se constituem podem ser, de forma genealógica, descritas a partir da relação entre humanos e suas montarias. Também os ditos populares, construídos numa amálgama de personagens históricas, figuras literárias e mitos, com seus cavalos sempre presentes, entregam a quem lê, pela pena de Carbonieri, um passeio pela terra, por suas expressões e pelo necessário estranhamento que dá ao mundo novos sentidos.

No cuidado de dar ao conjunto de poemas a forma de um livro, para além do gênero, do tipo e do fio condutor, Carbonieri oferece, também, um olhar sobre a realidade. Percebemos isto porque, nos últimos poemas, depois de tantas relações, interações e submissões aos humanos, celebra-se a beleza dos cavalos em suas características naturais, como se estivéssemos no clímax de uma narrativa. Há um encantamento em se olhar o animal como se ele atravessasse, sem qualquer amarra, a paisagem à nossa frente. Metonimicamente, nestes poemas, que encaminham quem lê para o fim, a natureza sob sua forma selvagem e bela encontra – e nos demonstra – suas várias formas de resistir.

 

pequena corcela

sendo bela como a corça

grácil borboleta

 

A presença de três animais, todos substantivos femininos, chama a atenção. No vocábulo que é quase um arcaísmo, “corcela”, temos o animal que o humano tenta, ao longo de sua existência, submeter. Este, contudo, mesmo pequeno, assemelha-se à grande natureza selvagem (e é importante que tratemos esta palavra, selvagem, sem a carga pejorativa que, geralmente, a ela atribuímos), à corça. Ambos, o animal que o humano se esforça em domar e aquele que corre solto pelas matas, ganham frágeis asas, “a borboleta”, e flanam, ao invés de trotar.

Por mais tentador que seja continuar neste processo de ler, sugerir possibilidades interpretativas e propor olhares, importante mesmo é propor à leitora ou ao leitor, que chegou até aqui, que retorne ao livro, provavelmente já inteiro lido, e o releia, várias vezes, muitas vezes, em voz alta ou apenas com a alma silenciosa. Mesmo que, neste posfácio, alguns temas – ou linhas temáticas – tenham sido apontados, vale ignorá-los e construir novas leituras. Estes poemas, sem título, com pouquíssima ou nenhuma pontuação, aparentemente aprisionados em três versos, dizem muito – e dirão, no vindouro, sempre que forem relidos. Há, contudo, e é provável que seja proposital, lacunas, brechas, frestas em que Carbonieri escreve, mas não diz. Esteja, então, quem lê, em atenção, tendo em mente a advertência que Paulo Leminski nos deixa e que cabe, com perfeição, a esta bela obra: “Repara bem no que não digo”. Reparando, nossa cavalgada recomeça, sem réguas, num trotar ora torto, ora veloz e, sempre, sempre, sem saber se conduzimos ou acompanhamos os cavalos e a poesia.





Paulo Sesar Pimentel é um escritor brasileiro, autor dos livros Café com formigas (2004), Diário de uma quase (2010) e O cão sem penas (2014). Graduado em Letras (UNEMAT), Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT), Doutor em Psicologia (UFF), é professor do IFMT Campus Cuiabá – Bela vista.


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