MulherArte Resenhas 16 | "Chão Batido", de Juçara Naccioli: vozes monumentais de ontem e de hoje - Por Marli Walker
Chão Batido, de Juçara Naccioli:
vozes monumentais de ontem e de hoje
- Por Marli Walker
Chão Batido, de Juçara
Naccioli, chega pela editora Cálida - SP, neste 2021, trazendo a linguagem de
uma voz lírica ancestral (seria a avó?), atualizada por outra voz (seria a
neta?), conduzindo o leitor por entre cantigas, alecrins, lavandas, rosários,
orvalhos, rezas e patuás. Ao leitor desavisado, o estranhamento poderá ocorrer
logo ao iniciar a leitura dos poemas, que vêm revestidos de “pretuguês”,
grafados em linguagem que revela a diversidade cultural desde o chão até o
teto, passando pelo quintal onde se colhem as ervas para proceder às rezas e
benzeções.
A
poeta advertiu-me, quando lançou o livro, para que lesse os poemas seguindo a
sequência, caso quisesse vivenciar uma experiência de leitura mais intensa. Foi
o que fiz, que não sou boba nem nada. Quero sempre a experiência o mais potente
possível quando o assunto é poesia, linguagem, literatura. A atmosfera densa
vai se tornando, aos poucos, em ambiente mais iluminado. À medida que se
avança, é possível arriscar um ritmo aos versos e aceitar as bênçãos sem
oferecer resistência.
Cristiane
Sobral lembra, em prefácio à obra, que a gramática, a norma culta tem sido
instrumento utilizado “como forma de poder e controle”. Naccioli chega,
portanto, derrubando limites estabelecidos entre a academia e a comunidade negra,
sua cultura, seu falar, suas crenças e sua luta. A poeta traz à tona a voz de
uma avó/bisavó/trisavó benzedeira, rezadeira e faz do poema o suporte para que
ouçamos essa outra língua, esse lugar outro, essa reinvenção, como afirmou
Sobral.
No
poema “Benzeção”, a voz lírica dá mostras, entre outros aspectos, da sabedoria ancestral
no preparo do banho para animar criança, pa
bacuro alivantá/.../ tô falano pa
suncê/ tem que cuidá/ cadê a fita incarnada no bracim/ que nega falô pa botá?/ tem que sê na mão certa/ sinão num vai adiantá. Logo adiante, no
mesmo poema, a sapiência é reiterada: conheço
tudo meus bacuro/ quando cêis vão com
mio/ tô vortano com fubá/ mas agora vamo lá.
Fico
imaginando o que diriam colegas linguistas diante da potência poética e
linguística deste Chão Batido. Penso também em colegas estudiosos da
literatura. “Cansar-se-iam” eles ao percorrer este Chão Batido e sentiriam o mesmo desconforto que senti diante de
língua/linguagem tão diversa e ao mesmo tempo tão profundamente brasileira?
Fato
é que do título da obra ao conteúdo, certamente há elementos tantos quantos se
desejar para empreender uma pesquisa sobre a formação da sociedade brasileira a
partir do português falado neste universo familiar à Naccioli. Há outros tantos
elementos para pensar de quantos modos e formas pode a poesia se erguer a fim
de sacudir o leitor e fazê-lo pensar, refletir e reordenar a sequência de certo
e errado, clássico e erudito, antigo e contemporâneo. A partir de que
perspectiva são estabelecidas as afirmações sobre o que é o correto e
academicamente aceito? Não precisamos responder. Sabemos da soberania do
sistema patriarcal e sua implicação na normatização e estratificação social.
Sabemos que advém dele o silenciamento de todo e qualquer grupo que não esteja
rigorosamente alinhado aos seus preceitos. A subalternidade das minorias é
prerrogativa patriarcal. Historicamente, homens e mulheres negros são os que
mais incisivamente viveram e ainda vivem as ignóbeis consequências desse sistema
estrutural.
O
livro parece revelar o transcorrer de um dia de intensa atividade da anciã
benzedeira, acolhedora, que recebe os fii das mais variadas classes sociais sem
fazer a menor distição. Ela os ouve, aconselha, prepara receitas de chás e
banhos para todos, independente da procedência social ou racial. É uma mãe
cheia de amor e afetos acolhendo a quem busca por socorro. Aos poucos, conforme
observamos a lida do dia, estamos ao lado dela, sem resistência, ouvindo e
aprendendo antigas lições sobre perdão e caridade.
Aliás,
“Resistência” é o poema que surge, já na parte final do livro, para romper com
a ordem interna das coisas, pois já se havia formado uma espécie de
cumplicidade com a voz poética, com o pretuguês e até com a ideia de ser passarim avuadô, livre e solto. O poema
soa como um chamado, um retorno. É como sair do estado de sonho e devaneio para
retornar à instância do real. Um corte, uma ruptura que introduz um poema
escrito em língua padrão. Um susto. Para mim, uma catarse. Parei por um
instante diante da intrusão daquela voz: convidava
a vovó/ De volta à rede. No poema
seguinte, “Orvalhada”, ainda a mesma voz a falar sobre o orvalho das plantas, a
narrar um banho cheiroso diferente,
dizendo das “Cantigas”, Em som chiado e
compassado/ Naquele chão batido/ De barro socado. Na sequência, os poemas
“Alecrins”, “Rosário” e “Rebanho”, também em português padrão, parecem dizer ao
leitor: sou a herdeira da voz ancestral que você teve o privilégio de ouvir até
há pouco e venho para te dizer que o tesouro está à salvo. Venho para te
orientar antes que retornes ao mundo repleto de normas e regras, de classes e
distinções. Eu honro todas as minhas ancestrais, seus rituais, sua língua, sua
força, seu ofício de levar paz e acalanto a quem quer que seja.
Foi
assim o meu encontro com a poeta Juçara Naccioli. Uma experiência catártica,
como se diz no universo acadêmico, foi o que vivi ao pisar neste chão
monumental. A poeta já nasce grande, conhecedora de sua herança e sabedora da
missão. Ela vem forte e revela o que tem
nas moringa de nega. Voltarei sempre, sob a luz da velha lamparina a querosene, para visitar esta poesia que surge
imensa, das entranhas do Chão Batido para as alturas de voo noturno.
Chegou hora de avuá. Êêê txê
txê...(rs)
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