Quatro poemas de Ana Dos Santos | "Retorno ao Atlântico Negro"
Imagem de Harubaba por Pixabay. |
Quatro poemas de Ana Dos Santos
RETORNO AO ATLÂNTICO NEGRO
Quero escrever uma carta para colocar numa
garrafa e lançar ao mar.
O mar do Atlântico negro...
o mar que na sua ressaca traz à beira da praia
os corpos dos imigrantes,
refugiados, expatriados,
que junto de suas crianças correram em busca
de uma vida melhor e encontraram a morte...
Ah, esqueci!
Esqueci que essa era uma carta de amor para a
humanidade.
Mas quem pode exigir amor, quando tem criança
morrendo de fome,
ou em meio a uma guerra?
Como posso falar em amor,
quando famílias inteiras morrem afogadas nesse
mar de sangue,
numa diáspora forçada,
que refaz a rota do descobrimento numa rota de
desespero
e de cobrança de tudo que nos arrancaram,
terra, língua, saberes, cultura,
espiritualidade.
Como é necessária a reeducação do homem
branco!
Esse homem que vive de privilégios,
desde sempre,
montado nas costas dos negros
e brincando de cavalinho com as amas-de-leite
negras...
Como vamos educar o respeito ao diferente
para o homem que objetifica os corpos das
indígenas e das negras?
Como vamos dar liberdade a tantos negros
inocentes
que lotam as prisões
pagando por crimes que não cometeram
pagando pelo crime de ser um corpo negro...
Se meu coração falasse,
ele sangrava...
E eu escreveria essa carta com sangue
e não jogaria mais ao mar,
mas amarraria no corpo de um pássaro
para enviar aos céus
Socorro!
Salvem nossas almas!
O retorno é para outro planeta!
*
O ESTRONDO DO SILÊNCIO
o mundo parou
mas a terra não parou
de girar
pessoas morrendo
aqui e em todo lugar
sempre foi assim
a roda a girar
a morte e a vida
pessoas nascem
pessoas morrem
mas, dessa vez,
primeiro,
ouviu-se o estrondo do silêncio
medo
...
corpos começaram a tombar
um atrás do outro
como um dominó
comecei a contar os mortos
perdi a conta
um chinês
um italiano
um japonês
uma prece para esses três
uma espanhola
uma nigeriana
uma americana
encontradas mortas
em cima da cama
um brasileiro
um alemão
um estrangeiro num cruzeiro
que não pôde atracar
corpos sem velório
mandados para enterrar
...
o estrondo de uma lágrima
que caiu no chão
um pedido de socorro
de joelhos
uma oração
pedidos foram feitos:
'“fiquem em casa”
e as pessoas obedeceram
e em suas casas
foram encontradas mortas...
silêncio
...
descobriram que a solidão
mata
aos poucos
de repente
descobriram que seres humanos
vivem sem água
sem pão
sem teto
sem coração
...
silêncio
...
um abraço na tevê
causou indignação
um médico e uma presidiária
foram julgados sem exceção!
hoje, essas mesmas pessoas
que julgaram a atenção
imploram por um carinho
um abraço
um aperto de mão
...
o estrondo
que parou o mundo
talvez seja uma lição
talvez seja em vão
não precisamos esperar
por nada
que fica igual a situação
da mulher
do negro
do índio
do gay
da lésbica
das pessoas trans
esses corpos
vêm tombando
na floresta
e no quarteirão
eu também já perdi
a conta
dos que talvez
sobreviverão
ao estrondo
do silêncio
do abandono
e da solidão
morreremos
afogados
no mar de desilusão
esse vírus invisível
não vai te poupar, não!
não tem álcool
nem vacina
não limpa com água e sabão
o estrondo do silêncio
é uma voz dizendo: não!
Imagem de Manie Van der Hoven por Pixabay.
Menininha, quando dorme,
põe a mão no coração.
Você já parou
em meio às prateleiras do supermercado
e teve vontade de chorar
vendo os preços dos alimentos
e contando as moedas???
Menininha, quando dorme,
põe a mão no coração.
Um homem me chamou,
no meio da rua
e disse que estava com fome.
Um homem de meia idade,
vestido com alguma dignidade.
diante da fome
ele comeu a minha reação...
Menininha, quando dorme
põe a mão no coração.
Ela nos disse
que o aluno foi até a escola,
no dia mais frio do ano,
vestido de bermuda, camiseta
e de pés descalços
buscar as tarefas pra fazer em casa.
Ela nos disse que ofereceu uma passagem
de ônibus
e ele não quis,
porque o cachorro dele
não poderia entrar no ônibus...
Menininha, quando dorme,
põe a mão no coração
Menininha,
segura
esse
coração
porque ele não dorme
transborda
compaixão
Menininha, acorda,
seja toda coração!
*
Ai! Meu Deus!
Nunca se rezou tanto sobre essa terra!
Desejando que esse vírus acabe!
“Não há mal que perdure!”
Dizia o ditado...
E o bem...esqueci...
Vó, como é que tu rezava?
Eu,
que já fui tua filha
no teu ventre-menina
Me ensina
a atravessar
esse deserto...
Imagem de Karen/Lyn Nobull por Pixabay.
Feliz em estar e ser Arte com essas Mulheres!!!
ResponderExcluirLindos poemas, Ana...
ResponderExcluirEmocionam. Dizem verdades fortes que bradam por justiça!
Abraços...