Pés Descalços 03 | Quanto vale seu bicho

 





        Quanto vale seu bicho


Por volta dos sete anos de idade tive uma galinha de estimação. Fiz promessa a ela de que jamais nos separaríamos. Cuidei desde que era pinto. Gostava de fazer casinhas e caminhas para ela com tranqueiras velhas que pegava pelo quintal. Eu a achava a galinha mais linda do mundo. Penas brancas como as nuvens e plumas rosadas, roliça e grandalhona.

Li muito para o meu filho a história “A Vida Intima de Laura”, de Clarice Lispector, cuja personagem principal é uma galinha, Laura. Eu passava os momentos de folga em baixo de um pé de manga, ao lado dela, geralmente pela manhã, quando os pássaros mais cantam em meu quintal.

Quando a minha avó paterna vinha nos visitar, corria até ela e perguntava “vovó, quando a minha galinha tiver os pintinhos, eu serei a avó deles?”. A minha avó abria um sorriso enorme. Depois dela, não me lembro se apeguei a outro animal. Gosto de vê-los soltos pelos matos, ainda mais sendo pássaros com suas cantigas pela manhã.

Houve um dia em que a avó chegou com a cabeça baixa e poucas palavras. Sentou-se ao meu lado e disse que a minha família já havia uma semana que não comia carne e estávamos ficando fracos. Ainda mais a minha mãe, enfraquecida, por estar amamentando o seu sexto filho. Um dos motivos por ela estar ali era para se juntar à minha mãe a me convencer a matar a galinha. Com a avó ao lado seria de mais fácil compreensão. Eu teria que ser forte, não chorar pela galinha. Ela seria um bom sustento para todos. Mataram e eu também a comi. Ela não teve o mesmo fim de Laura. Fui forte, como havia  prometido a minha avó.

Sempre em minha vida lembrei-me dessa galinha. Depois de tanto tempo, já com os meus 43 anos, consegui elaborar a falta que ela me fez. O sofrimento reprimido que eu fiquei pela morte do meu animal de estimação. Um bicho dentro de mim.


Inocência, 2021. Neide Silva.
        

 





Comentários

  1. Ah, Neide, como é prazeroso acompangar o resgate de suas reminiscências - sua sensibilidade explica inclusive o carinho de transmitir sua paixão pela leitura ao seu filho, e a escolha por Clarice mostra a razão de Norberto ter se transformando em um menino tão profundo :)

    ResponderExcluir

Postar um comentário

PUBLICAÇÕES MAIS VISITADAS DA SEMANA

De vez em quando um conto - Os Casais - por Lia Sena

Mulher Feminista - 16 Poemas Improvisados - Autoras Diversas

200 palavras/2 minicontos - por Lota Moncada

Nordeste Maravilhoso - Viva as Mulheres Rendeiras!

Cinco poemas de Catita | "Minha árvore é baobá rainha da savana"

A vendedora de balas - Conto

DUAS CRÔNICAS E CINCO POEMAS DE VIOLANTE SARAMAGO MATOS | dos livros "DE MEMÓRIAS NOS FAZEMOS " e "CONVERSAS DE FIM DE RUA"

A POESIA PULSANTE DE LIANA TIMM | PROJETO 8M

Preta em Traje Branco | Cordel reconta: Antonieta de Barros de Joyce Dias

UM TRECHO DO LIVRO "NEM TÃO SOZINHOS ASSIM...", DE ANGELA CARNEIRO | Projeto 8M