Um trecho de romance de Babi Borghese | "Em nome do papa"

 

Imagem de Kitty Vanrooij

Um trecho de romance de Babi Borghese

Em nome do papa



“(...) Solana deu um giro de 180 graus na paisagem que a cercava... a senhorinha à sua direita terminara o café, mas não dava nenhum indício de ir embora ou fazer novo pedido, concentrada que estava em seu exercício mental. Uma mãe muito elegante aguardava com duas pequenas o sinal verde para atravessar o lungotevere Augusta em frente a ponte. No ponto de ônibus à sua esquerda, uma octogenária de cabelos azuis curtos em cachos muito bem penteados dava informações a uma turista de shorts e mochilão nas costas. Uma van escolar presa no trânsito parou à frente de Solana, cheia de meninas uniformizadas que conversavam alegremente. A cena toda era de um equilíbrio perfeito, nenhum som e nenhuma imagem fora de contexto. Eis o sagrado feminino, Solana pensou, fazendo conexão com a parte mais essencial e sublime do ser humano, especialmente da mulher: a alma. A alma saudável (sagrada). Poderosa. Um dom aguardando ser despertado. Girou novamente o pescoço e leu uma plaqueta na esquina indicando a piazza del Popolo.

- É isso! - Solana gritou, desequilibrando o ambiente.

Desistiu de jantar, pediu a conta e saiu às pressas pela via Ferdinando de Savoia até a praça, precisava ter uma conversinha de pé de orelha com Felice Della Rovere, enterrada na capela da família na igreja de Santa Maria del Popolo. Deu com a cara na porta, a igreja estava fechada para restauro. Seu sagrado feminino partiu-se ao meio. Desacorçoada, atravessou a praça de cimento e caminhou pela via Babbuino, a mais bonita de Roma na sua opinião, certamente a mais bucólica, quase sempre vazia face à concorrida via del Corso, que corre em paralelo. Buscava um pouco de paz na estreita rua de pedras acinzentadas com casas antiquíssimas construídas em travertino, de cujas paredes terracota escorrem trepadeiras de um forte verde-escuro, enquanto um azul royal cai do céu, numa palheta de cores que as grifes da rua vizinha não conseguem imitar. A paz e o silêncio terminaram ao final da via, de onde ela já ouvia o burburinho da piazza Spagna. Virando a esquina, Solana pode avistar a fila de orientais bilionárias que faziam romaria pela via dei Condotti, com sacolas da Louis Vuitton, Balenciaga, Valentino, Hermés, Montblanc, Cartier, Bvlgari, Gucci, Prada. Verdadeira contraposição com a galhofa turística nada elegante, mas igualmente barulhenta, que se apinhava na escadaria que leva a.... Trinitá Dei Monti!

- É isso! - Solana gritou consigo mesma dessa vez, renovando as esperanças.

Madonna Felice era proprietária daquela região do Monte Píncio (de onde, por detrás da Igreja, ergue-se a atual Villa Borghese). Queria ser enterrada ali, na mais luxuosa capela que sua família possuía. Com o decorrer dos anos ela mudou de ideia e refez o testamento, manifestando o desejo de ser sepultada numa capela mais simples, que tinha na Santa Maria del Popolo. Ofegante, Solana parou por um segundo no meio da escada de 135 degraus. Lá embaixo avistava a cena da qual fizera parte minutos antes: a piazza Spagna com a fontana della Barcaccia, de frente para a via dei Condotti, em triangulação com as Babbuino e del Corso, que terminam na piazza del Popolo. Nem a fonte de Bernini nem a escadaria existiam na época de Felice. O local era uma imensa ladeira lamacenta devido a constantes enchentes, com uma subida escorregadia que nem todas as mulas conseguiam vencer. Respirando fundo, Solana continuou sua escalada, determinada a falar com Felice. Se não podia ser em seu túmulo, que fosse no genuflexório mais utilizado por ela.

Passava das 19h e a última missa acabara há poucos minutos. Embora os turistas ainda pudessem entrar, a igreja já estava à meia luz e pouca gente se interessava pela visita. As capelas que margeiam a nave principal estavam todas apagadas, exceto... a Della Rovere! Solana ajoelhou-se no genuflexório de Felice, admirando L’Assunzione, a tela de Volterra que ocupa toda a parede frontal. À sua maneira peculiar, Solana rezou:

- Porra, Felice, o que você está fazendo na minha vida? Que cazzo você tem a me dizer?

A igreja, quase vazia, foi escurecendo. A acústica perfeita fazia Solana ouvir, de algum canto mais à direita, o barulho dos pesados e antigos interruptores de luz, que alguém manejava com pouca habilidade, parecendo não conhecer bem o circuito. Solana percebia que uma ou outra luz era acesa por engano atrás dela a cada click do interruptor, e apagada logo em seguida. De repente, toda a igreja se apagou à exceção da capela Della Rovere, e na sequência, sua vizinha à esquerda se acendeu. Solana entendeu o ocorrido como um sinal e foi conferir. Era a capela Orsini, que ela nem sabia que existia. Será que jazia ali, entre seus familiares, Camilla Orsini Borghese, princesa de Sulmona? Perplexa, Solana jogou-se nos degraus de mármore e se debruçou nas grades que fechavam a capela. Olhou de soslaio para a Della Rovere, que se apagou de supetão. Felice já não tinha mais nada a dizer. Se Solana quisesse descobrir mais coisas, que perguntasse a Camilla.

- Vossa Alteza poderia me informar onde está seu marido?

Depois de fazer a pergunta em voz alta, Solana riu de si mesma. Que bom não ter nenhum brasileiro por perto para entender as palavras que estava pronunciando. Será que Camilla entendia português, como Felice? Ao fazer a pergunta, ocorreu a Solana que ela poderia, antes, ter se apresentado à princesa. Mas o que falaria? Algo do tipo: “Oi, sou a versão evoluída de seu marido. Onde a senhora o enterrou, por favor?”

A resposta veio num novo piscar de luzes. A capela Orsini se apagou deixando Solana no escuro por um microssegundo, até que a do lado esquerdo – a última antes da porta – se acendeu. Solana sorriu para Camilla e mudou novamente de lugar. Uma imensa réplica da Pietá decora a vizinha, e o descritivo diz que se trata da capela Borghese!

- Ora vejam só! Os livros só falam da capela Paolina em Santa Maria Maggiore, mas é claro que a família possuía uma capela. Por que não pensei nisso antes?

As paredes laterais tem cravadas frases em latim e Solana só entendeu que a capela foi patrocinada por Ortensia Borghese Caffarelli – irmã de Paolo V, mãe de Scipione e tia de Marcantonio – para enterrar seus entes queridos. Por mais que Solana procurasse, não havia uma lista de defuntos, nada dizia que o príncipe ali jazia... a não ser sua esposa, que provavelmente estava deitada ali ao lado. Mas Solana concluíra que o Sagrado Feminino havia, afinal, movido seus pauzinhos e as nobres mulheres do entorno haviam lhe contado o que nenhum livro relatava. Ela havia descoberto a tumba que procurava!

Num piscar de olhos, a igreja se iluminou e a capela de Ortensia foi apagada. Solana agradeceu às três sagradas almas femininas que se perpetuavam ali e saiu em direção à via Sistina, rumo a Roma Termini. As emoções do dia a haviam extenuado. Ela daria o seu mundo por um prato de spaghetti cacio e pepe e uma taça de prosecco do Mercato Centrale. (...)”


*


Release de Em nome do papa


“Um livro dentro de um livro; uma viagem dentro de uma viagem – ou várias” define a autora, causando certo suspense. “Viagens pelo mundo, pelo tempo e pelo interior da alma.”

Em nome do papa reconstitui o nascimento do barroco na Itália do século 17 por meio de fragmentos - de tempo, de consciência, de informações. Como brinca a própria escritora, "este é um romance histórico de fatos reais baseados na mais pura ficção”.

Foram quatro anos de pesquisas e, cabalisticamente, quatro meses de escrita. Durante o processo, Babi teve que aprender italiano para passar dois meses na Itália estudando história da arte, vasculhando bibliotecas e os Arquivos Secretos do Vaticano. O melhor dessa experiência está registrada no livro, por meio das vivências da protagonista, espécie de avatar da autora.

Como boa leonina, logo na estreia da carreira literária Babi se propôs a um desafio: redigir o diário de um príncipe conforme sua idade, amadurecendo aos poucos a linguagem desse personagem, dos seis aos 56 anos. No decorrer desse tempo, capítulos ficcionados a partir de momentos históricos colocam em cena grandes personagens de época como Gianlorenzo Bernini, o cardeal-nepote Scipione Borghese e o papa Paolo V, estes dois provavelmente seus ancestrais, que ela ainda tenta confirmar, quem sabe para um segundo volume. Ela tinha ideia de continuar montando sua árvore genealógica na Itália em 2020, mas a pandemia adiou seus planos.

Em nome do papa faz parte da coleção Viagens na Ficção, da Chiado Books, e já pode ser adquirido pelo seguinte link: Chiado Books.


Imagem de Vezna Zivcic por Pixabay.





Imagem de Fernando Sant'Ana.


Paulistana com um pezinho no resto do mundo, Babi Borghese sempre que pode dá umas viajadas, o que lhe permitiu já ter levado sua mochila de estimação para passear em muitos países e também por vários pedacinhos de Brasis. Formou-se em publicidade. Trabalhou com produção de jingles no studio Spalla até a invasão do sintetizador, quando tudo perdeu a graça. Foi fazer anúncio de cliente direto para o After Eight, um jornal que só falava da noite em São Paulo - baladas mil, com redação dentro de um bar, o House. Num pulo, virou jornalista. Cultural, sempre (nunca cobriu greve nem buraco de rua). Depois fez assessoria de imprensa (de casa noturna, teatro, televisão, jamais de político ou jeans). Também trabalhou na Rede Record. Pula daqui, pula de lá, foi parar no Itaú Cultural, onde continuou pulando - da assessoria para comunicação corporativa, para literatura, para o jornalismo cultural, para tudo ao mesmo tempo, por quase 20 anos, obtendo o reconhecimento da Who’s Who Storical Society americana (2001-2002). Desde 2013 dedica-se à astrologia e à gastronomia alquímicas e projetos pessoais como este, em outro instigante desafio. Agradece ao Universo pelas delícias de navegar meio sem leme, deixando a vida seguir a maré...



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