Pés Descalços 05 | FARTURA


                                                                         FARTURA


Minha tia, às vésperas de natal, convidou-me para irmos ao centro pegar cestas básicas que seriam distribuídas para as pessoas carentes, para quem tinha os tíquetes, iguais aos dela. Não sei com quantos anos eu estava, mas ainda passava por baixo da roleta do ônibus. Foi um dos motivos de ter recebido o convite, não pagaria a passagem; outro seria cuidar do primo enquanto ela pegasse as cestas.

       Haveria também lanches, brinquedos e parque de diversão. O local de distribuição era no parque de exposição. O nome era atrativo “parque” e eu sempre imaginativa. Chegamos ao local às oito da manhã e o sol já batia forte em nossos couros. Naquele dia, o parque de diversão que eu havia sonhado, como nos filmes de Hollywood, abriu espaço para corpos famintos, parecidos como aqueles pintados por Portinari, só que em um cenário agro de Matogrosso. Nós: eu e tia fazíamos parte da pintura.

Passava das dez da manhã, bebíamos água das torneiras, utilizada para a limpeza do local -, disputávamos com o restante do povo. De longe se avistava um esboço do barquinho sendo devorado pelas crianças. Queria também estar nele, mas tinha o compromisso com o meu primo, o bebê da tia que lutava pela cesta.

Já passava das onze quando a tia chega, cansada, com fome e as mãos vazias. Pegou o bebê no colo, sentou-se em uma muretinha próxima a mim, amamentou o filho com os seios e o suor que escorria de seu corpo. Aproveitei a oportunidade e fui em direção à multidão que se debatia pelas cestas básicas. Ninguém conseguia conter os famintos. O chão molhado pelos suores que escorriam do povo. Pintura de Portinari se desfazendo inundando a parede.

Com meu corpo desenhado pela fome, esquivei por entre os outros, em meio ao amontoado de cadeiras e nos vãos de coisas que estavam ali. Como soldado na guerra, rastejei por debaixo do palco. Palco e plateia em uma única cena, a luta pelas cestas. Consegui mesmo imprensada pela multidão pegar uma delas. Corri arrastando o saco quando encontrei uma conhecida, sentada sob uma sombra que dividia com mais uma dúzia de outros que pegaram a cesta. Pedi que cuidasse da minha.

Consegui mais uma refazendo o trajeto da primeira conquista. Uma mulher de cima do palco, onde se encontravam aqueles não pintados por Portinari em miséria, me deu um disco de vinil, daqueles pequenos. Agora eram duas cestas básicas e eu, orgulhosa de mim. Pensava, como seria a reação de mamãe. Fiquei feliz, imaginando por quantos dias teríamos alimento.

Puxei as cestas para perto da minha tia, uma de cada vez enquanto acolhia com cuidado o disco que ganhei, em uma das mãos. Olhei para a tia, desanimada, com a criança ainda no peito. Ofereci uma das cestas a ela, que deu um sorriso de alivio por voltar para casa também com os alimentos. Mostrei o disco que ganhado. Ela disse que era da mulher morta.

Feliz por chegar em casa, pela reação de mamãe com as cestas. Agora só havia uma. Mostrei o disco de vinil. Ela sem entender do que se tratava, analfabeta para ler de quem era. Fui até meu pai que disse ser da mulher morta. Na casa da vovó, o meu tio: é da cantora morta.

Já era noite do dia vinte e quatro de dezembro e não havia encontrado alguém que pudesse tocar o disco, para escutarmos a mulher morta. No dia seguinte, no meio da manhã, o meu tio levou seu aparelho para a casa de vovó e colocou o vinil para tocar. O meu presente de natal, além do macarrão com sardinha no almoço, tinha também outro alimento: a “Morena de Angola” na voz de Clara Nunes. Música que me sustentou no próximo ano, naquela época.



                                                Sem titulo, 2018. Neide Silva










 

Comentários

  1. Tocante relato, que nos coloca em meio a cena tão bem detalhada, contendo elementos raros como a citação das esqualidas pinturas de Portinari, a descrição dos sentimentos, do ambiente de disputa pelo alimento, uma narravitiva
    Que inevitávelmente nós envonve e nos traz o drama real da história vivida.



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