A POESIA, A PROSA E A PINTURA DE VIOLANTE SARAMAGO MATOS |Projeto 8M

 
(fotografia do arquivo pessoal da autora)

8M

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)

Hoje é dia de mergulhar na arte múltipla e fascinante - na poesia, na prosa e nas aquarelas - de VIOLANTE SARAMAGO MATOS:


(capa do livro Escritas da pandemia com caneta e pincel

1)

AS MINHAS CIDADES

As minhas cidades são ruas quase desertas
onde os carros são brinquedos de criança 
sem crianças para brincar.
As minhas cidades são quadrículas de espaços 
tristes, estranhas, quase opressivas
sem namorados a namorar.
As minhas cidades são prédios que fecham
gentes tensas, ansiosas, preocupadas
onde a alegria custa a entrar.
As minhas cidades estão silenciosas
mas molhadas dos desinfectantes
que corajosos trabalhadores teimam em usar.

As minhas cidades tratam por tu a água 
Lisboa tem o seu Tejo
o Funchal, o enorme Atlântico.
As minhas cidades teimam
em resistir e em voltar a viver.
Teimam em querer-nos
por entre esquinas e impasses
avenidas e largos e jardins.
As minhas cidades teimam. 
Saibamos teimar como elas.
As minhas cidades resistem.
Sejamos dignos de resistir com elas.

             Março, 2020 - 2° dia do estado de emergência

(* poema do livro 'Escritas da pandemia com caneta e pincel')

(* aquarela: Tabuleiro)

-*-*-*-

2)

PASSARAM OITO DIAS

Passaram oito dias sobre o assassinato de George Floyd
que era negro, e suspeito que se não o fosse poderia estar vivo.
Ainda não se percebeu muito bem qual a sua culpa
ou se outra não teve além de ser negro.
Passaram oito dias de uma violência policial racista
(igual a outras demasiadas outras mesmo entre nós)
que só se torna visível porque foi gravada.
E revelada. E vista.
Passaram oito dias e não consigo esquecer o pouco que consegui ver
um 'polícia', assassino branco 
um joelho sobre a garganta de um homem algemado deitado no chão 
com a cabeça entalada entre o joelho e o pneu de um automóvel. 
Passaram oito dias e em poucas inocências haverá quem pergunte
se o 'polícia' branco pode dormir
sem o pesadelo de não poder respirar.
Passaram oito dias e continuo a perguntar-me
como se pode matar assim
friamente,
deliberadamente,
odiosamente,
conscientemente.
Apenas porque sim.

           Junho, 2020 - oito dias depois do assassinato de George Floyd

(* poema do livro 'Escritas da pandemia com caneta e pincel')

(* aquarela: Cadeia de transmissão)

-*-*-*-

3)

ESCADA

Depressa ou devagar
sós ou acompanhados
a apoiar uns ou a apoiar-se neles.
Lanço após lanço,
sem empurrar na subida
procurando com esforço,
o nosso,
chegar lá,
a um novo patamar da escada
- É assim a vida.

Parar quando é preciso,
recuar quando se impõe.
Vencer obstáculos,
evitar degraus partidos
entre patamares.
Querer chegar é o que nos alimenta 
e nos mantém,
mesmo que haja que ir buscar
quem ficou para trás 
- É assim a vida.

Até que os degraus faltem
e não haja mais acima.
- Foi assim a vida.
Que tenha sido vida e não um faz de conta!

         Junho, 2020 - para o aniversário da morte de um homem

(* poema do livro 'Escritas da pandemia com caneta e pincel')

(* aquarela: Dá-me a tua mão)
 
-*-*-*-

4)

O MAR

Gosto muito de Mia Couto. Do que escreve e de como escreve. De quando, pelos romances, nos transporta aos sentimentos, falares e vivências de Moçambique e de quando nos obriga a ler cada página com atenção redobrada. "O Universo num Grão de Areia" é, nestes aspectos, exemplar. Feito de intervenções, escritos, palestras, não chega a este livro ser convicta declaração de um compromisso. Ele é também um compêndio, onde a reflexão sobre cada frase ou página nos leva a outras reflexões, nossas, como se o autor nos diga Olha! e de repente percebemos que uma porta se abre, para que possamos ver o que existe para além dela, num desafio à nossa capacidade de reparar.

Leio a apresentação que Mia Couto fez de um livro de José Eduardo Agualusa. A certa altura transcreve estas palavras de "A rainha Ginja": "Nos dias antigos, os africanos olhavam para o mar e viam que era o fim. O mar era uma parede, não uma estrada".

Estou sentada. Desta vez não na varanda, mas na praia de uma ilha, ainda mais perto do mar. E, se visto daqui, quase como um prolongamento da areia e do nosso olhar, ele pode ser estrada ou caminho por onde se pode sair por aí fora, para muitos, é ainda uma parede, um obstáculo. Viver rodeado de água significa que não podemos, por nós próprios, sair. Por muito que andemos, seja qual seja a direção tomada, o mar é barreira.

Não sabemos viver dentro de água. Voar também não é connosco. O nosso corpo só está preparado para viver com os pés em terra. E numa ilha, tenha ela o tamanho que tiver, a terra pode não ser suficiente, se nos impuser ficar. Ficar no que já conhecemos, ou acreditamos conhecer, mas, acima de tudo, ficar ausentes de outros saberes. Este mar que nos cerca é o mesmo que quem vem de fora tem de ultrapassar. Chegar, obriga a cumprir distâncias, galgar águas e marés. Significa perguntar sobre hábitos diferentes. Implica dar a conhecer identidades novas. Saber de todos aqueles para quem as paredes estão muito para cá do mar, estão na casa, na rua, no desconhecido ou no medo.

Agora tudo é simples, diz-se! Já não precisamos de sair da ilha para o mar ser vencido e as dificuldades ultrapassadas. Transatlânticos e aviões, redes móveis e imóveis, wi-fis abertos e fechados, whatsapps e mais umas quantas aplicações facilitam e permitem a comunicação, a informação, o conhecimento. Mesmo que não fisicamente, estamos sempre ligados ao mundo. 

Será. Mas o mar a que me refiro não é o mar de cabos e promontórios sejam eles bojadores ou das tormentas. Não é o da Taprobana ou da imaginada ilha dos amores. Nem o das Índias, orientais ou ocidentais sejam elas, por onde andaram as velhas naus e aventureiros quinhentistas.

O mar de que falo é maior e muito mais perigoso que toda a água dos oceanos. É o mar da perda da memória e do esquecimento. Do medo e da cedência. Do deixa andar e do logo se vê. Do não saber e do não perceber. Do não querer ou do não ser.

O mar de que falo é o mar que nos rompe. É aquele que deixamos que outros façam crescer dentro de nós, tanto que ficamos incapazes de lutar e combater. Esse é o mar que verdadeiramente precisa de novas caravelas e muitos corajosos marinheiros. 

          Outubro, 2020 - no Porto Santo a ler Mia Couto

(* crônica do livro 'Escritas da pandemia com caneta e pincel')

(* aquarela: Outros mares)

-*-*-*-

5)

A LUZ DO CANDEEIRO

Não quero apagar a luz. Por uma razão que conheço (mas finjo não saber) quero a luz acesa. Olho o quarto, as paredes e os seus quadros, os móveis com coisas nossas, os livros em cima da mesa de cabeceira e para lá da porta, adivinho o resto da casa. Tudo parece transmitir segurança, como se nada de estranho ou de mau possa entrar, enquanto a luz do candeeiro estiver acesa. É com luz que escrevo, que pinto, que converso, que faço as coisas que gosto e as outras.

Não é que o escuro me traga de volta os medos de menina. Mas traz outros para onde o pensamento se dispersa, porque se não fixa em nenhum pormenor iluminado. E corre pela noite, visitando memórias, imaginando sofrimentos, perdendo-se em direitos e injustiças, alimentando a angústia do desconhecido.  Até que o sono põe fim à deriva.

Na manhã seguinte, quando acordo, a comprovar que a luz não é exatamente a antítese da escuridão, nenhum drama ficou entretanto resolvido, nenhum grande problema foi ultrapassado e eu já não sou exatamente a mesma pessoa. Mas há luz e é ela que empurra a viver. 

E porque a vida não é uma sucessão de folhas fotocopiadas ou uma qualquer imagem simétrica que o espelho nos devolve, resta-nos sair ao caminho, andar, olhar para a frente e para trás, procurar, escolher, fazer. Ser. E assim estará certo!

         Dezembro, 2020 - no primeiro dia do mês - em jeito de dedicatória a quem comigo vive há 50 anos

(* crônica do livro 'Escritas da pandemia com caneta e pincel')

(* aquarela: Antimetria)

-*-*-*-

6)

ONZE PALAVRAS DEPOIS

É um daqueles dias em que, desde que acordamos, as sensações estão viradas do avesso.

O dia tristonho agrava o cinza dos sentimentos e alguma chuva que cai ajuda a disfarçar um choro suave que não conseguimos parar. O futuro parece não existir e é como se à nossa volta só existissem portas e nós estivéssemos sozinhos, ali, num mundo de portas que prende e limita. Nas mãos temos chaves, muitas chaves, e pensamos que, de entre todas, haverá uma que pode abrir essas portas. Mas só uma das portas tem fechadura e, quando depois de uma procura desesperada, a encontramos, teremos que descobrir qual é a chave que a abre. Quando, por fim, o conseguimos, rodamos a fechadura, abrimos a porta, e vemos que dá para lado nenhum! Há dias, sabemos todos, há dias assim.

O rádio ligado como é costume na Antena 2, trouxe Luís Caetano e a sua 'A Vida Breve' uma vez mais com Craveirinha. A voz cheia e expressiva do poeta moçambicano leva-me lá muito atrás, às "As saborosas tangerinas de Inhambane". Levantei-me, andei pela casa a pensar e, de repente, no prato da fruta, entre anonas e bananas, uma tangerina.  Agarrei nela. Esta é da Madeira, mas, simbolicamente, pode ser de Inhambane.

E lembrei-me de um verso 'Homem quando é homem é só um coração. Não é dois'.

O dia ganhou outra cor!

        Fevereiro, 2021 - num dia em que onze palavras me ajudaram

(* crônica do livro 'Escritas da pandemia com caneta e pincel')

(* aquarela: Quanto valem as palavras)

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* 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas' iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
* aquarelas e textos de Violante Saramago Matos, integrantes do livro Escritas da pandemia com caneta e pincel, Coleção Intermitências, Porto/Viseu/Lisboa/Aveiro/PT: Edições Esgotadas, abril/2021)


(fotografia do arquivo pessoal da autora)

VIOLANTE SARAMAGO MATOS é natural de Lisboa/PT e atualmente reside em Funchal, Ilha da Madeira/PT. Licenciada em Biologia, foi professora do ensino secundário e técnica de controle laboratorial de alimentos. Também exerceu atividade extra-profissional em questões ligadas ao ambiente e ao ordenamento do território. Foi ativista e dirigente da luta estudantil contra a ditadura e a guerra colonial e, em 1973 passou 3 meses na prisão de Caxias/PT. Após 1974 continuou a exercer atividade política, tanto em partidos quanto em movimentos cívicos, como o de apoio ao Timor-Leste contra a guerra do Iraque, e o a favor da despenalização da IVG (interrupção voluntária da gravidez ou aborto voluntário). Foi Deputada da Assembleia Legislativa da Madeira, entre 1996 e 2000, e em 2006. Também exerceu o cargo de Vereadora na Câmara Municipal do Funchal, entre 1997 e 2001. É escritora de literatura infantojuvenil, além de poeta, contista e cronista.

Livros publicados: O Quinas ganha uma casa (infantil, Vila Nova de Gaia/PT: Editora 7 Dias 6 Noites); A história de um instante (Funchal/PT: Nova Delphi/2012); Beijinhos (infantil, com Luísa Antunes Paolinelli, Porto, Viseu, Lisboa, Aveiro/PT: Edições Esgotadas/2011-2021); Na primeira pessoa (Vila Nova de Gaia/PT: Editora 7 Dias 6 Noites); Quinas - à descoberta (infantil, Editora O Liberal/2015); Quinas, pelo mar fora (infantil, Edições Esgotadas/2018); Quinas, uma viagem à Ria (infantil, Edições Esgotadas/2019); Quinas com a Kali no Paúl (infantil, Edições Esgotadas/2011, 2021); Tixa a Presidente! (infantil, com Luísa Antunes Paolinelli e Raquel Lombardi, Edições Esgotadas/2019); Pintas e Pirata - Detetives de pata cheia (infantil, Edições Esgotadas/2020); Quando o verão amadurece (crônicas e contos, Edições Esgotadas/2020); Escritas da pandemia com caneta e pincel (poemas e crônicas, Edições Esgotadas/2021).




Comentários

  1. Fascinada pela obra de Violante Saramago Matos. Obrigada por nos apresentar tamanha beleza, Nic!

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  2. Incrível a delicada sensibilidade dessa escritora. Obrigada por nos apresentá-la e também por nos mostrar uma parte de sua obra. Adorei!

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