Pés Descalços 06 | NATUREZA
NATUREZA
Caminho pelo parque Tia Nair, enquanto o vento
me enche de lembranças. A ilha vai se enchendo de cantoria e do brincar. Nas
bordas do lago, um arco íris atua em forma de passarela. O cenário de agora é outro.
Jardim Itália, Alphaville, Renascer, Avenida das Torres. Meus pais sempre
falaram: “adquirir uma casa traz dignidade para a família!”.
Dentre as lembranças da
infância, uma me acompanha até hoje, a de uma tia que não tinha casa e vivia de
alugar os fundos de outras residências. Muitas famílias vinham da zona rural
para a cidade em busca de melhorar de vida. Gostava de brincar com as primas, filhas
dessa tia. Brincávamos de casinha, bonecas, lutas marciais, inventávamos e impúnhamos
as próprias regras.
Em um determinado dia
as brincadeiras foram interrompidas pelo movimento na rua principal do bairro, bem
a frente de onde eu morava. As pessoas seguiam para o lado sul, próximo das terras do “dotor”, como as pessoas o chamavam. O lugar era cercado com arame farpado e
havia peões, guardadores das terras daquele homem. A escola de frente da minha
casa, na qual iniciei e conclui o ensino fundamenta, foi nomeada de Dr. Orlando Nigro, em sua
homenagem. No sonho de infância, o mundo acabava, ali, na cerca, onde um galo
cantava, de frente ao nosso bairro, despertando nosso amanhecer.
Curiosas, eu e a
primas, reunimo-nos à multidão para saber do acontecido. Minhas outras duas
primas, já casadas, disseram-nos que próximo dali havia um grilo e estavam atrás
de um lote para construir uma casa também. A multidão passava por nós, com sede
da terra. Carregam suas foices, enxadas, fações. Traziam lonas plásticas à mão.
E a minha tia seguia mais atrás, com a certeza de uma dignidade futura.
Eu e a prima, como brincássemos
de guerreiras, fomos também. Saltava pó daquele chão em que mulheres, homens,
crianças, velhos e jovens pisavam. A terra quase devorada, árvores no chão
O
preto das barracas escurecendo o cenário. Não era mais eu e o dotor das terras,
mas os quais estavam com a mesma sede que nós. Maiores que eu e prima, donos das
foices, mais tempo de lutas, do sol nos coros e, vividos do que estavam por
vir. Conquistado o pedaço de chão, o escuro das lonas deu lugar para a vista do
bairro, ainda sem nome. Conquista, Alto da Esperança, Boa Morada. Sonhava com
um nome enquanto a prima foi procurar a tia, sua mãe. Eu riscava o chão com um
pedaço de pau: a futura sala, cozinha, quartos, banheiros. Do alto parecia a
conquista da lua, a gente golpeando o solo com a bandeira. Titia não acreditava
na conquista. E sorriu, como se olhasse para o que eu senti, um futuro. Olhar
para frente era belo. Cuidando, para que não fosse invadido. Do alto dava para
se ver a lagoa, no meio uma ilha com uma pequena árvore. Brinquei naquelas
águas como em um paraíso. Crianças maiores nadando, os menores na pequenina
praia de areia. Os adultos baldeando água para a futura casa. O movimento
parecia canto. Em uns quinze dias, mais
ou menos, tudo aquilo viria abaixo. Os sonhos arrastados por tratores. Não
soube por ordem de quem: do doutor, do mexicano, do prefeito, do estado.
Há dezoito anos moro no
Jardim Itália, em uma casa com portão eletrônico que abre e fecha para eu
entrar e sair com o meu Cross fox. Faço caminhada no parque Tia Nair,
geralmente dou quatro ou cinco voltas em torno da pista. Às vezes me sinto como
um rato de laboratório, dando voltas num redondo. Talvez da liberdade que o
lugar já simbolizou pra mim.
Sem titulo, 2019. Neide Silva
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