UM TRECHO DO LIVRO "SYNTHOMAS DE POESIA NA INFÂNCIA", DE GLORIA KIRINUS | Projeto 8M
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão,
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
SOBRE A POESIA
"A natureza humana é poética e naturalmente transdisciplinar. O primeiro olhar do homem primordial foi de sensibilidade extrema dos sentidos e das emoções sobre o mundo. Foi um olhar indagador. E o mundo afetava o homem com a forte e contundente presença dos fenômenos da natureza, provocando uma sintonia estética com este, num canal de reciprocidade. Ou num verso e reverso.
A razão, o conhecimento científico, a tradução do mundo em alfabeto, em gramática, em conceitos e teorias, chegaram depois. A lógica poética nasceu com o homem banhado num dilúvio de anseios, desejos, medos e mistérios. Não, certamente o mundo não foi feito em alfabeto, como diz Manoel de Barros. O mundo foi feito em natureza escancarada, sintonizando com a recepção existencial e estética do ser humano. Sim, "as primeiras línguas eram cantantes e apaixonadas, antes de serem simples e metódicas", como bem lembrou Rousseau.
O conhecimento é poeticamente transdisciplinar, sem divisão dos sons, das imagens e dos significados. No lance de um olhar, de uma escuta, de uma apreensão da realidade, ganha-se uma unidade integrada que se faz mais evidente na vivência da criança e do homem que, a toda hora aprendem e se surpreendem, desde que não tenham incorporado a lição da acomodação e da impermeabilidade diante da vida.
Mas o que é, afinal, a poesia? Não dispensamos o aval etimológico para explicá-la e apresentamos duas: uma que vem do grego poièsis (criação); e outra que procede do hebraico phoisis (pho-isis). Nesse sentido a partícula "pho" equivale à palavra voz. E "isis" equivale à palavra Deus. Portanto, o significado seria "a voz de Deus". Fabre D'Olivet, filólogo e ocultista francês do século XIX, que traz para nós esta definição, coincide e se harmoniza muito bem com a percepção de Giambattista Vico, filósofo, historiador e jurista italiano do século XVIII, que escreve sobre a "sabedoria poética". Vico afirma que a poesia procederia da origem do homem primordial, no momento em que o mesmo endeusava o que ele não via, não compreendia e desconhecia. Esta seria uma qualidade divina. Divina significa: o que não se vê. O que não se vê e não se sabe, adivinha-se, intui-se, inventa-se, subjetivando o mundo visível e o invisível. Daí nasce o universo mítico, abrigo e ventre de nossas primeiras metáforas.
É outra verdade a verdade poética. Ela não corresponde à lógica que permeia o universo do real, do objeto concreto, tátil e comprovadamente visível, como corresponderia à expectativa dos seres que aguardam experimentar e verificar fatos e feitos que se sustentam na empobrecida dinâmica de causa e efeito, ou na expectativa puramente funcional. É uma verdade que transcende o realismo filosófico, racional ou científico.
É outra mentira, a mentira poética. É uma mentira inventada no real que se realiza em verso ou em prosa. Esta mentira é chamada de ficção que, quem sabe, é a mentira mais verdadeira que existe, por ser inventada, simbolizada na palavra. Lembremos a resposta de Angela, quando perguntada sobre seus synthomas de poesia: "Eu mentia desbragadamente". Ela inventava e se inventava. De certa maneira ficcionalizava.
Quando Mário de Andrade diz: "eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta, mas quem sabe um dia toparei comigo", ele está inserido num estado de mentira verdadeira. Para topar de cara com nós mesmos, é preciso estar disperso nos outros, ser um Ser, caótica e desordenadamente, talvez, mas ser um Ser no Mundo.
Juntar os despedaços na vivência de um sonho, na leitura ou criação de um conto, de um poema, de uma fábula e harmonizar o mundo simbólico na sonoridade, na imagem e no significado, estrutura e articula o cosmos de uma criação pela arte. Este cosmos tem uma natureza cosmética. Isto é, uma natureza com intenção de beleza. E se nós não temos muito clara essa percepção, as palavras têm. Elas sabem receber os recados significativos na sua própria gênese e na sua própria etimologia. Já dizia Heráclito, "não dês ouvidos a mim, mas à palavra, e confessa que todas as coisas são uma". As palavras guardam em si sentimentos que, fraternizados com a sonoridade, ganham signficados de profunda ordem. Estão aí os cantos tribais, os mantras, as rezas, os estribilhos e repetições que abriram a madrugada das formas poéticas, como bem explica Segismundo Spina.
As palavras aguardam por nós, bem-dispostas e gratuitas. As palavras irmanadas ou contrárias que se autoexplicam, pela etimologia poética, expressam saber e sabor, muito além de nós: mundo/imundo, cosmos/cosmético, pulcro/sepulcro, humano/humus/humilde, resposta/responsável, origem/original. E ainda não entramos no mundo dos substantivos, de farta substância, como diria a boneca Emília de Monteiro Lobato. De fato, quando chegamos ao substantivo com atenta e delicada escuta, não é difícil aderir à percepção de Crátilo, diante das palavras: "Espera um pouco, por Zeus! Não concordamos nós, já muitas vezes, que os nomes, os bem formados, se assemelham às coisas designadas por eles e que são suas imagens?".
Cratilianos ou não, as palavras são nossos tradutores universais dessa individualidade que nos marca como humanos e desse corporativismo maior que é a sociedade interlocutora e interativa que afina ou desafina suas relações inter e transtextuais.
A infância da humanidade, gestora dos mitos da criação, é autora da poesia. Daí sua autoridade, na expressão de sua verdade e na sua incapacidade de ser absolutamente real e unívoca, porque ninguém é singular, mas múltiplo de mil, ou de trezentos, conforme dita Mário de Andrade.
Ela, a poesia, é invenção, criação e harmonização. Os deuses inventados para aclamar ou acalmar as manifestações da natureza estão aí, poeticamente situados. As danças da chuva, os ritos de passagem, a escuta do canto dos rios e do barulho do vento, do código sonoro dos pássaros, são as primeiras escutas em estado de poesia. Já dizia Cassirer: "o mito combina um elemento teórico e um elemento de criação artística. O que nos impressiona em primeiro lugar é a sua íntima associação com a poesia".
A metáfora desprende-se dessa fonte inaugural do mito. Ela não é uma figura de linguagem alheia à linguagem e ao DNA mítico. Pelo contrário, ela justifica sua genealogia no manancial das palavras com sentido incorporado, com sentido animado:
[...] Vico se esforçou para mostrar que as metáforas utilizadas no discurso moderno tinham, nas idades primitivas, um significado bastante diferente: representavam os termos segundo os quais o homem apreendia o mundo em sua volta e que, desse modo, "fazia sentido" para sua experiência.
O saber poético não obedece à exclusiva ditadura da razão, mas sua verdade é reminiscência do saber mitopoético, que remonta à origem da linguagem e do nomeador primordial que num batismo de metáforas invadiu de poesia o mundo. Esta verdade também faz parte do desejo que é próprio do ser humano e que, numa tentativa de transcendência, se desestabiliza entre a morte e a vida e se equilibra na plenitude da verdade poética, desejo pleno de poièsis ou de poien-isis.
A Verdade, segundo estudos de Marcel Detienne, não se afasta do Léthe, o engano, o esquecimento. Este Léthe da sabedoria grega não está em sentido oposto à verdade, mas é aliado desta. Assim, a verdade da poesia compreende, na sua fonte, a ambiguidade. Os poetas, os sacerdotes, os xamãs, os alquimistas, considerados pela sociedade como "não normais", sabem desta verdade maior que acolhe o engano e supera-se em amplidões significativas, além das conjeturas puramente conceituais e rigorosamente científicas. O maior engano está na palavra que representa o real. Mas a palavra é um engano pleno de virtude verdadeira que parte do real para traduzi-lo em imagens, sejam estas imagens sonoras, de movimento ou visuais, porque a poesia habita todas as artes.
É desta verdade poética, que se inventa em fábulas, que nascemos humanos. Ou somos humanos porque damos sentido fantástico ao nosso estar no mundo e à nossa existência?
De uma ou de outra maneira, uma certeza: não somos apenas bestas sadias que procriam, como bem diz Fernando Pessoa num poema. Somos poeticamente soberanos de um mundo simbólico precioso que a literatura, entre outras artes, organiza esteticamente e se manifesta de muitas maneiras. Algumas delas, nas peraltices da infância arteira e nos synthomas que nos remetem à percepção lúdico-transdisciplinar do conhecimento e do saber sensível.
A poesia irrompe o cotidiano, e mesmo que precise de uma intenção e ordenação estética, ela não se sujeita aos rigores do tempo e do espaço. A poesia canta uma canção eterna nutrida em cantos e preces antigas que até sabiam alegrar ou curar.
A criança recebe com muita facilidade a poesia. Ela é sua antiga conhecida, desde sempre. Basta dar um poema aqui que ela responde e corresponde com outro lá. A poesia é origem e pressupõe originalidade, e a criança responde bem a esse jogo de surpresas com a linguagem.
(...)".
*
Escreveu os seguintes livros bilíngues de literatura infantojuvenil: O galo cantou por engano (El gallo canto equivocado; São Paulo/SP: Paulinas, 1994); Te conto que me contaram (Te cuento que me contaron; São Paulo/SP: Cortez, 2004); Quando chove a cântaros (Cuando llueve a cántaros; São Paulo/SP: Paulinas, 2005); Sete quedas, sete anões e um dragão (Siete cascatas, siete enanos y um dragón; Curitiba/PR: InVerso, 2005); Quando as montanhas conversam (Quando los cerros conversan; São Paulo/SP: Paulinas, 2007); Se tivesse tempo (Se tuviera tiempo; São Paulo/SP: Larousse/Escala, 2010); Lâmpada de lua (Lámpara de luna; São Paulo/SP: Larousse/Escala, 2011); e Tartalira (Tortulira; São Paulo/SP: Melhoramentos, 2014). Publicou, ainda, em português, os seguintes títulos de literatura infantojuvenil: Menino do mar (São Paulo/SP: Melhoramentos, 1990); O camelo e o camelô (São Paulo/SP: Paulinas, 1998); Aranha castanha e outras tramas - crônicas e contos (São Paulo/SP: Cortez, 2006); O sapato falador (São Paulo/SP: Cortez, 2008); Um barco em meu nome (São Paulo/SP: Paulus, 2012); Carta para el niño (São Paulo/SP: Paulus, 2012); Formigarra, Cigamiga (São Paulo/SP: Paulinas, 2013); Um sol em meu nome (São Paulo/SP: Paulus, 2014); Entre dezembro e janeiro (Curitiba/PR: InVerso, 2015); Os números primos e seus sobrinhos (Porto Alegre/RS: EDELBRA, 2016); Um antônimo em meu nome (São Paulo/SP: Paulus, 2018); Auroras e madrugadas (Curitiba/PR: InVerso, 2021); A lhama e o cisne (Curitiba/PR: InVerso, 2021); O pai do catavento (Belo Horizonte/MG: Aletria, 2021). Também publicou o livro de minicontos Simplícios e Confúcios (Curitiba/PR: Kotter Editorial, 2019); além dos livros teóricos na área de Letras e Educação: Criança e poesia na pedagogia Freinet (São Paulo/SP: Paulinas, 1998); e Synthomas de poesia na infância (São Paulo/SP: Paulinas, 2011).
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