"A POÉTICA DO ESPAÇO NA LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA: A CASA - O INFINITO PARTICULAR", ARTIGO DE ISA CORGOSINHO
A POÉTICA DO ESPAÇO NA LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA:
A CASA – O INFINITO PARTICULAR
por Isa Corgosinho
A epidemia COVID-19
que assombra a humanidade nos cinco cantos do mundo, enlutando os continentes
com as cifras desestabilizadoras de milhares de mortes, aumentou, sobremaneira,
a responsabilidade das mulheres pelo coletivo familiar. O duro e pesado fardo
feminino agravou-se ainda mais pelo desemprego que atinge os mais vulneráveis
na já penalizada classe trabalhadora. No mundo todo, mas principalmente no
Brasil, o feminicídio atinge índices alarmantes, fomentado pela familícia
fascista que desgoverna o país.
Os movimentos sociais criam meios e
modos de organização para confrontar o caos sanitário e o total descaso
governamental que impera de norte ao sul do país. As organizações de
resistência, que em contexto de normalidade expressavam-se nas manifestações de
rua, apropriam-se das mídias virtuais, que ganham força devido às medidas de
segurança. O Projeto Enluaradas nasce nesse complexo e desafiador contexto, com
posições estéticas vinculadas ao ético, com militância firmada nos movimentos
feministas e em outras bandeiras dos movimentos culturais.
Se pensarmos num lugar de fala, ele certamente será traçado em geografia complexa, numa espiral centrípeta de comunicações poéticas; pontilhado, marcado por fragmentos incisivos de um discurso amoroso afirmativo e transgressor.
A arte é o front principal da resistência do coletivo Mulherio das Letras e suas ramificações, como o Projeto Enluaradas: a poesia é a força motriz do processo criativo. A partir de chamadas para publicações nos diversos Grupos do Mulherio, poetas dos diferentes cantos do mundo escancaram suas gavetas e lançam, enviam seus poemas para publicação e divulgação em meios impressos e virtuais. Outras ações são desencadeadas com o propósito de fortalecer os canais de criação, escuta, circulação e trocas entre as poetas participantes.
Embora recente, o Projeto Enluaradas marca posição
de protagonista, vanguarda no crescente fluxo da literatura feminina
contemporânea, e já nos oferece profícuas possiblidades reflexivas sobre suas
coletâneas de poesias. Ao nos debruçarmos sobre alguns poemas do projeto,
ocorreu-nos a vontade de refletir teoricamente sobre a constituição de algumas
imagens reincidentes na poética feminina que merecem um início de
conversa.
Além das marcas ideológicas, a riqueza
imagética que transborda dos versos das enluaradas nos movimentou em direção a
uma obra que parece se localizar na constelação das filhas de Selene: A poética
do espaço, de Gaston Bachelard. Por que essa obra mobiliza nossa
atenção? Primeiro, porque a casa, local por excelência de abrigo, tornou-se, no
contexto pandêmico, um complexo sistema espacial: isolamento, lazer,
esconderijo, prisão, escritório, escola, ateliê, retiro, oficina e, sobretudo,
território propício aos vários tipos de violência e neurose. Segundo, porque a
casa voltou a ser habitada vinte e quatro horas pela família que ali estava
quando começou a pandemia. O isolamento, por mais tristonho que seja, pode nos
dar um ganho inesperado, e as dádivas dele são inúmeras: aguça a intuição,
erradica as lamentações, elimina as fraquezas com os golpes, proporciona
um insight penetrante, assegura o poder incisivo da observação
e de visão de perspectiva jamais alcançadas nas pessoas que o negam e o
rejeitam. Finalmente, porque foi nesse espaço de isolamento, tirando proveito
de suas dádivas, que parte significativa de mulheres se debruçou sobre a
escrita criativa, buscando na linguagem literária o refazimento do caos em
cosmos.
Na Poética do espaço,
Bachelard apresenta a casa como um corpo de imagens que dão ao homem razões ou
ilusões de estabilidade. Constrói uma ideia de casa que diverge da noção de um
objeto, apresenta uma reflexão sobre as relações simbólicas pelos trilhos da
relação realidade e imaginação, na concepção de um ideário fenomenológico. Para
um fenomenólogo, as nuanças de nosso apego a um lugar predileto não são
colorações superficiais suplementares. É necessário dizer como habitamos o nosso
espaço vital em conformidade com as dialéticas da vida, como nos enraizamos,
cotidianamente, “num canto do mundo”.
Destacam-se, nesses trilhos, as
relações oníricas que simbolicamente transcendem os espaços físico e material,
normalmente pensados em seus predicados utilitários, e nos leva a interpretar a
ideia de que “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de
casa” (1993, p. 25). Interessa-nos muito a fala de Bachelard quando
afirma que na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os
limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, por
meio do pensamento e do sonho.
É nessa forma expandida da simbologia
da casa que nos orientamos para interpretar os sentidos enunciativos da poesia:
abrigos, aposentos, refúgio – elementos de unificação e integração do homem
frente ao mundo de dispersão dos sonhos, das lembranças e do pensamento;
avassalados por inundações de imagens exteriores e pelo medo da morte,
enlutados por perdas de entes queridos.
Bachelard esclarece que não é apenas em
sua positividade que a casa é verdadeiramente vivida, não é somente no momento
presente que reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um
passado; a antiga locução: “Levamos para a casa nova nossos deuses domésticos”
tem mil variantes (BACHELARD, 1994, p. 25). E o devaneio se aprofunda de
tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para além da
mais antiga memória. A casa, como o fogo, a água, nos permitirá evocar luzes
fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa
região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar, ambas trabalham
para aprofundamento recíproco e constituem, na ordem dos valores, uma união da
lembrança com a imagem. De tal modo, a casa não vive somente no dia
a dia, mas no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos
sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os
tesouros dos dias antigos. Por outro lado, a casa possui espaços que
representam o refúgio das emoções – sótão, porão, corredores – que são
desvendados pelo estudo psicológico sistemático dos lugares físicos da nossa
vida íntima. A literatura feminina está carregada de enunciados poéticos que
associam a intimidade aos espaços físicos da casa e suas
adjacências. Assim compreendida, a casa configura um corpo de
imagens que dão ao indivíduo razões e ilusões de estabilidade, constância. É
preciso reinventar constantemente sua realidade: distinguir suas possíveis
imagens é perseguir a alma da casa; perseguir uma psicologia da casa. O
resultado dessa ordenação está na representação da casa como ordenação de
imagens que a torna um ser vertical, muito ligada à ideia de consciência ou,
por outro lado, a imagem da casa como um ser concentrado em que se enfatiza a "consciência de centralidade”. A relação consciente e inconsciente - realidade
da casa e do espaço de forma concreta e realidade do espaço de forma abstrata -
indicam a relação junguiana com a realidade e seus símbolos.
A poética do espaço de Bachelard
oferece-nos reflexões importantes para a interpretação de alguns poemas, que
situam o lirismo numa relação estreita com as dimensões metafóricas da casa e
as ambivalências dos seres ali representados. Nota-se que, na poesia, o espaço
adquire o caráter de poética ao estabelecer relações simbólicas que envolvem os
dramas e aspirações dos seres em seus espaços habitáveis ou desejados,
sonhados. Esse mundo simbólico funde elementos do eu lírico a espaços que
transcendem o material e acenam para representações arquetípicas junguianas.Trata-se não
apenas do consciente, mas das relações entre espaço e inconsciente, em que a
leitura da realidade transcende para camadas psicológicas que denotam e conotam
informações cruzadas sobre a relação entre o ser e o espaço. São os
poetas e escritores que nos levam a refletir sobre a diversidade de imagens
associadas à memória, à infância, à passagem do tempo e à precariedade do mundo
de representações. O canto nos leva à tomada de consciência frente ao universo
e à significação da vida, a partir de pequenos olhares sobre espaços dos
detalhes e da simplicidade. Por outro lado, a imensidão reflete uma
busca existencial numa espécie de meditação exaltada, cuja transação da
espacialidade poética produz infinitos particulares, em buscas de grandezas
relativas. É nessa tentativa de compreensão de espaços, pela via de uma
poética, que se chega a uma noção mais amplificada dessas relações e as
aproximam das reflexões filosóficas e psicanalíticas e que buscam na imagética
e na fenomenologia os alicerces para as complexas relações entre o homem e o
espaço.
Nic Cardeal
Eu tenho c(asas) que me habitam os olhos,
verdadeiras vilas com quintais por trás das retinas,
telhados que acolhem chuvas esparsas,
uns ventos, uns pássaros em descanso das asas,
chaminés exalando fumaças em busca de nuvens espessas.
que corressem livres, cantantes, felizes
– esses meninos e essas meninas –
entre o balanço das redes e a colheita das amoras,
fazendo estrelas brilhantes nos céus dos meus olhos depois do poente...
depois das costas, das omoplatas,
dos contornos das minhas estradas internas tão tortas,
passeios noturnos indo dar na janela da alma,
quem sabe ali o mundo estivesse sempre bonito
e eu pudesse esconder toda essa ‘minha gente’ a salvo.
e ‘os meus meninos e as minhas meninas’ seriam crianças felizes,
sem medos, sem tempo, sem susto, sem limbo,
amarelinhas desenhadas nas bordas, nas beiras,
no centro, nos cirros, nos nimbos,
cirandas e rodas e poesias e prosas,
risadas rosadas, espécies de esperanças eternas
em casas etéreas com tetos tão ternos,
deixando bem longe as tristezas do mundo concreto...
Eu tenho um vaso de sonhos brotando na sacada da alma encharcada
– depois da lama, além do lótus –
haverá de nos caber um respirar em amor
onde ‘meus meninos e minhas meninas’
sejam sementes e brotos e flores e frutos
de um deus mais decente.
O eu lírico expressa no signo casa um
continente que contém asas, aprisionadas na ambivalência dos parênteses, mas
libertas pelas janelas do olhar, que não está doente dos olhos. A
imagem da casa desdobra-se em vilas com quintais projetados nas asas do desejo
da refração. A casa é imaginada como um ser vertical. Ela se eleva. É um dos
apelos à nossa consciência de verticalidade. Os elementos telhados,
chaminés, vento projetam a casa como espaço de ascendência, o telhado
metonímico onde descansam os pássaros, em meio às intempéries. Na vida do
homem, a casa afasta contingências. Ela mantém o homem através das tempestades
do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma, segundo Bachelard. Sem ela,
a infância é um ser disperso, desprovido, denuncia o poema. A casa é
imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consciência de
centralidade, ela é o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser jogado no
mundo, o homem é colocado no berço da casa. Mas os meninos e as
meninas estão ao relento, desapropriados do grande berço que é a casa e suas
adjacências lúdicas para a infância. O ser é um valor e reclama um tratamento
digno, e a vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada e feliz no
regaço de uma casa. É o que os olhos da poeta desejam, para estarem plenos de
estrelas. O desejo de acolhimento expressa-se na denúncia da
injustiça reinante. A infância sem-teto, ainda mais diminuída no mundo
exterior, despossuída dos valores da intimidade de um lar, mas também das
possibilidades oníricas que esse espaço favorece, que as experiências dos
sentidos podem oferecer. O corpo metamorfoseia-se expressando o
sentimento do mundo, prepara-se para acolhimento do universo particular “de
toda essa 'minha gente'.” Por fim, a integração com a mãe
Terra, a grande casa-útero, onde se processa o ciclo vida-morte-vida. A
transmutação da matéria humana convertida na árvore da vida, mas protegida por
outro paradigma de justiça divina – é uma metafísica que passa por cima das
preliminares em que o ser é o bem-estar, em que o ser humano é colocado num
bem-estar, no bem-estar associado primitivamente ao ser.
A casa cosmológica no poema de Nic
Cardeal está em luta, em ação terrena pelo acolhimento social dos vulneráveis.
Bachelard diz em seus devaneios que uma metafísica completa, que englobe a
consciência e o inconsciente, deve deixar no interior o
privilégio de seus valores. No interior do ser, no ser do interior,
um calor acolhe o ser, envolve-o. O filósofo reafirma que o ser deveria reinar
numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria
adequada. Parece, diz ele, que nesse paraíso material o ser mergulha no
alimento, é cumulado de todos os bens materiais. Para além das metafísicas, o
poema de Cardeal denuncia a vulnerabilidade de toda essa nossa gente sob um
sistema que se mantém às custas de graves, medonhas injustiças
sociais. O lúcido anseio, desejo de libertar as crianças
da precariedade material, em dialógicos cruzamentos artísticos e cósmicos
faz coro com a música Comida, dos Titãs – diversão, arte
e a liberdade de viver em casas etéreas com tetos, tecidos por uma sonoridade
do ser, a poesia fala no limiar do ser, ser-Tão.
Patrícia Cacau
somos iguais em tudo que é invisível aos olhos.
E nas lágrimas nos encontramos.
Nada é tão banal
E o pouco é tão importante quanto o essencial
Um universo em fios
unindo-se para reconstrução do grande ventre de sustentação
da divina mãe.
Eu sou porque muitas foram,
Tu serás e outras serão após.
Recebi e agora entrego o que foi por herança.
Permanece aquele que se entrega.
Olhado pra ti, me vejo cada vez mais mulher.
E o que antes foi solto agora está ligado.
Passado e presente reconectando com o futuro.
Seja um ser que reconhece o seu papel nessa fazedura.
Independente do corpo que habita.
Não se distraia, seja MULHER!
O poema de Cacau é um canto ancestral
da sororidade. A casa aqui se desenha na ciranda das mulheres sábias. Seus
versos conjugam, evocam todas las madres, as muitas mães para
que nos orientem a perseguir a profunda vida criativa. Resgata o conceito da
mãe selvagem que, Segundo Clarissa Pinkola Estés, não deve jamais ser
abandonado, pois a mulher estaria abandonando sua própria natureza profunda, “a
que detém todo o conhecimento, todos os sacos de sementes, todas as agulhas de
espinheiro para os remendos, todos os remédios para o trabalho e o descanso,
para o amor e a esperança” (ESTÉS, 1994, pp. 228-229). A mãe selvagem
é a escola na qual nascemos, a escola na qual aprendemos, na qual também
ensinamos. Os rituais de ancestralidade são retomados nos versos de Inspiração:
embora as mulheres mais jovens tenham idade suficiente para gerar sua cria
(seus projetos artísticos) e bons instintos que a orientam corretamente, elas
precisam do estímulo, da atenção e do apoio das “deusas-mães”. Durante muitos
séculos, as velhas das tribos e aldeias compunham um sistema básico de nutrição
de mulher-para-mulher que apoiava em especial as mães jovens, ensinando-lhes a
alimentar, por sua vez, as psiques e as almas de seus filhos. As mulheres mais
velhas eram repositórios do comportamento e do conhecimento instintivo e podiam
transmitir os mesmos para as mais jovens. Elas passavam esses conhecimentos por
meio de palavras, mas também pelo olhar, um toque com a palma da mão, um
sussurro ou um tipo especial de abraço que diz “sinto carinho por
você”. O self selvagem que nos espreita, no poema de Cacau, é também
aquele que nos convoca a resistir aos condicionamentos de uma cultura
perversamente adoentada pelo sistema patriarcal. É preciso confrontar esse
sistema com arrojada sensibilidade, e a criatividade é a capacidade de
sensibilizar tudo que nos cerca. A poesia faz a escolha entre pensamentos, ideias,
sentimentos, ação e reação, cria um ser de linguagem capaz de reações
inigualáveis, que transmite ímpeto, paixão e determinação. É a ciranda das
mulheres sábias em pleno processo de criação.
Cátia Castilho Simon
Antes de mim
Houve um rosário
de sim
As Matrioskas russas constituem-se de
uma série de bonecas, feitas geralmente de madeira, colocadas umas dentro das
outras, da maior (exterior) até a menor (a única que não é oca). São pintadas
com cores vivas e desenhos variados. A palavra provém do diminutivo do nome
próprio Matriona. A imagem das Matrioskas pode ser entendida como pequenas
casas, metáfora onde habitam nossas ancestrais. O poema de Simon pode ser
compreendido no jogo de ressonâncias, que se dispersam nos diferentes planos de
nossa vida no mundo; e a repercussão, que nos convida a um aprofundamento de
nossa própria existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o
falamos, ele é nosso. A morfologia das bonecas, o oco das ressonâncias das
matriarcas nos obriga, nos impulsiona à repercussão, ao aprofundamento de uma
escuta ancestral e o repensar de nossa própria existência. A exuberância e a
profundidade impulsionadas pelo jogo dialógico da ressonância e repercussão
reanimam as profundezas em nosso ser. É depois da repercussão que podemos experimentar
ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações do nosso
passado. Mas a imagem atinge as profundezas antes de emocionar a
superfície.
Para compreensão dos consentimentos,
forjados na clausura, é necessário o restabelecimento da intimidade com a
natureza instintiva. A metáfora das Matrioskas nos revela o aprendizado das
histórias das quais fazemos parte, não existem fora de nós. Imaginemos uma
longa história pela porta de escuta de cada uma das Matrioskas, responsável por
novas gerações de mulheres. A última geração representada pelo eu lírico que se
define “Antes de mim” denuncia o enclausuramento ad infinitum, mas
a própria denúncia do rosário de consentimentos, abre canais através das
mulheres. É uma forma de luta da mulher selvagem para reerguer suas
descendentes, por mais que sejam proibidas, silenciadas, podadas e
enfraquecidas, torturadas, rotuladas de loucas, perigosas e de outros
depreciativos, elas voltam à superfície. É o que revela o ser pungente da
linguagem poética de resistência do feminino selvagem. Essa imagem, que a
leitura do poema Matrioskas nos oferece, torna-se realmente nossa; enraíza-se
em nós mesmas. Como almeja o saudoso poeta e semiólogo Décio
Pignatari, a imagem poética torna-se um ser novo da nossa linguagem;
expressa-nos, tornando-nos aquilo que ela expressa – isto é, ela é ao mesmo
tempo um devir de expressão e uma devir de nosso
ser.
Flavia Ferrari
Querer não basta
É preciso rastejar pelo território sem trincheiras
Sob as balas que cruzam e tiram a pele
As imagens poéticas lançadas pela poesia de Ferrari colocam a emergência da linguagem, que está, sobremaneira, acima da linguagem significante. Ao vivenciar os versos, temos a revigorante experiência da emergência. Ainda que seja uma emergência de pequeno alcance, essas emergências renovam-se; a poesia força a linguagem a um estado de emergência. A vida se expõe nela pela sua vivacidade; a poesia reclama, para o descanso do humano num porvir generoso, que as ações sejam realizadas na dialética inseparável das ações: querer, sonhar e viver são complementares e urgentes. Para confrontar o estático espetáculo do mundo dos déspotas, a ênfase é na coragem que se arrisca nos territórios do perigo e avança sem idealizações no desmonte do palco: O rei é morto! Um grande verso pode ter uma grande influência na alma de uma língua, prova disso é a acertada alusão desta expressão no poema. Ele desperta imagens apagadas no show emudecido da vida e sanciona a imprevisibilidade da palavra. A imprevisibilidade intencional das palavras, além de ativar a tonificação da vida, é uma aprendizagem da liberdade, de retomada da terra, a grande casa-útero. Que força, que potência a imaginação poética encontra na ironia sobre os totalitarismos! Aqui a poesia coloca a liberdade no próprio corpo da linguagem; ratifica seu lugar como um fenômeno de liberdade e justiça social. É preciso perseverar na cíclica jornada de lutas: só assim o humano revolucionário pode descansar, sem medo, sobre a parte que lhe cabe desse latifúndio.
multitudinária presença
que, em noite de lua cheia,
me devora e me expande
me dilacera e me liberta
me uiva e me assume
alcateia-me
em espetáculo ritualístico...
O poema de Cortezão evoca as questões da imaginação poética, enfatizando que é impossível receber o benefício psíquico da poesia sem a participação dialógica destas duas funções do psiquismo humano: o real e o irreal. Cortezão oferece-nos uma arquetípica terapêutica de ritmanálise pelo poema que tece, transfigura e conjuga o real e o irreal, que dinamiza a linguagem pela dupla atividade da significação e da poesia. O engajamento, na poesia, do ser imaginante é tal que ele deixa de ser simplesmente o sujeito do neologismo verbal alcateio-me. As condições reais já não são determinantes. Com a poesia a imaginação coloca-se na margem em que precisamente a função do irreal vem arrebatar ou inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos seus automatismos. Os mais alienantes dos automatismos, os automatismos da linguagem são quebrados, rompidos quando penetramos nos domínios da sublimação pura dos versos de Alcateio-me.
O poema realiza uma conjugação profunda com a natureza do feminino selvagem. A alcateia é a casa da mulher: ela viceja na mais profunda alma-psique das mulheres. O ritual de devoração, transmutação acontece na linguagem poética e no mundo dos sentidos. A poeta conclama a presença do arquétipo de La Loba, aquela que conhece o passado pessoal e o passado remoto, pois ela vem sobrevivendo gerações afora e é mais velha que o tempo: pode apreciar e uivar poesia/aos cantos cinza do mundo. Segundo Clarissa Pinkola, ela é a memória arquivada das intenções femininas: pode vislumbrar/ o lume dos anseios. Pinkola assegura, em seus estudos, que a biologia dos lobos Canis Lupus e Canis Rufus são como a história das mulheres, naquilo a que se refere à sua vivacidade e à sua labuta. O poema de Cortezão reafirma características psíquicas comuns às mulheres e aos lobos: percepção aguçada pelos ciclos da lua, onde ocorre a transmutação da mulher em loba, o renascimento antropofágico da mulher loba com extrema coragem e determinação feroz. Outro ponto de conexão entre lobos e mulheres é a capacidade intuitiva e a adaptação a circunstâncias em constante mutação. O poema está sutilmente denunciando o processo predatório contra os lobos e as mulheres por parte daqueles que os acossam e perseguem, atribuindo-lhes adjetivos ameaçadores como voracidade e agressividade. No entanto, o processo de entrega do corpo feminino ao gozo coletivo da alcateia faz coro com a dimensão cíclica de Gaia: tudo que vive morre, tudo que morre vive, viceja na comunicação poética. A poesia de Cortezão nos coloca em sintonia com o corpo selvagem: aquele que tem dois pares de olhos, um para a visão do prosaico, o outro para a vidência, os segredos; dois pares de orelhas, um para melhor escutar o som do mundo, o outro para ouvir as delicadezas e a fome da alma; dois tipos de força, a dos músculos e a inquebrantável força da alma. Encontramos essa potência do feminino selvagem no corpo multilíngue da poesia, que a amazonense, filha da floresta e do rio, nos oferece.
ORAÇÃO
Francis Mary
Rasga meu peito depressa
Planta na minha terra
Árvores fortes a me enraizarem.
A Oração de Mary nos
apresenta a imagem da casa como um grande habitat natural. A
poética do espaço se configura na dialética do grande e do pequeno, nas
experiências sinestésicas com natureza, no espaço onde a imaginação desfruta,
sem o intermédio das ideias, quase naturalmente, o relativismo da grandeza. A
imensidão no poema encena não apenas a meditação diante do espetáculo grandioso
da natureza, mas a relação simbiótica do ser, as imagens aparecem com seus
valores ontológicos, a dialética do interno e do externo, a impressão da
imensidão fica impregnada em nós. Aqui encontramos uma participação mais íntima
e integrada dos movimentos das imagens. Os elementos da fauna e flora avançam
sobre nossos sentidos: ouvimos os sons, vemos as cores e tocamos as texturas
generosas das imagens sinestésicas do poema. A fêmea despe sua vestimenta
civilizatória e reivindica seu habitat natural; a integração
profunda com a mãe terra; a necessidade de restabelecer o contato profundo com
natureza selvagem. Existe aí o desejo de desapegar-se do mundo da superfície,
onde reina soberano o ego civilizado.
O corpo oferece-se num ritual de vida-morte-vida. O mergulho no útero da terra e seus mistérios representa os ciclos de renovação e os portais iniciáticos para um renascimento profundo. Gaia é a grande casa onde habita o feminino selvagem, e o seu desejo é formar um grande santuário de união com o sagrado. Acordar a vontade de amar é um pedido para o restabelecimento da pele da alma, a cura profunda para o corpo anestesiado por um processo desenfreado de doações exaustivas: tudo que o corpo precisa para alcançar a sublimação líquida do rio e seu destino de correnteza, deslizamento.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
ESTÉS, Clarissa. P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e arquétipos da mulher selvagem. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
ISA CORGOSINHO (Isabel Cristina Corgosinho) é natural de Brasília/DF, e atualmente reside em João Pessoa/PB. É graduada em Letras Português e Literatura, mestre em Teoria da Literatura, e doutora em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília e Università di Roma, Sapienza. Professora universitária aposentada, poeta, autora de artigos e ensaios sobre literatura nacional e italiana.
Livros e outras publicações: Os Bandoleiros e O quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll (dissertação); Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino (tese); Memórias da pele (livro individual, integrante da Coleção III Mulherio das Letras, Venas Abiertas Editora Popular, 2021).
Participação em antologias e coletâneas: Coletânea Colheita 5 (org. Celeiro Literário Brasiliense Leia-me, Art Letras, 2020); Coletânea Enluaradas I: Se essa Lua fosse nossa (e-book, org. Marta Cortezão e Patrícia Cacau, Ser MulherArte Editorial, 2021); 1ª Coletânea de Poesia Mulherio das Letras na Lua (org. Chris Herrmann e Adriana Mayrinck, Ser MulherArte Editorial e In-finita, 2021); Coletânea Enluaradas II: Uma ciranda de Deusas (e-book, org. Marta Cortezão e Patrícia Cacau, Enluaradas Selo Editorial e Sarasvati Editora, 2021); Mulherio das Letras Portugal Poesia & Prosa (org. Adriana Mayrinck, In-finita, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para Elas (e-book, org. Vanessa Ratton, Amare Livros e Ser MulherArte Editorial, 2021); Coletânea Salvante IV: Entre Eixos (Saravasti Editora, 2022); Mulherio das Letras Portugal Poesia & Prosa (org. Adriana Mayrinck, In-finita, 2022); Coletânea Enluaradas III: I Tomo das Bruxas: Do ventre à vida (e-book, org. Marta Cortezão e Patrícia Cacau, Enluaradas Selo Editorial, 2022).
Meninas selvagens, Deusas do meu viver!
ResponderExcluirQue benção caminhar nessa existência com vocês, que nunca nos faltem força e fé para juntas ousar-mos no SER , MULHERES!
Muita gratidão, sempre 🌹 bjinhos 😘😘
(Nic, Isa 💞 tudo reflete no meu espelho!)
Nic Cardeal, amável poeta, agradeço mais uma vez por fazer parte do leque de mulheres contempladas por seu trabalho sensível e edificante no Mulherio das Letras. Muitos Vivas a essa revista! Beijos e agradecida!!
ResponderExcluir