UM TRECHO DE INCRÍVEL ROMANCE DE HENRIETTE EFFENBERGER | QUASE NADA DE AZUL SOBRE OS OLHOS
Hoje é dia de homenagear a grande escritora HENRIETTE EFFENBERGER, com o primeiro capítulo de seu romance Quase nada de azul sobre os olhos:
Capítulo 1
Não fosse pela repercussão que o ato poderia causar, bateria as solas dos sapatos, uma na outra, para não levar consigo nem mesmo a poeira desse lugar. Mas repetir Carlota Joaquin, quase duzentos depois, não era uma opção. Tudo que ela não precisava naquele momento era chamar a atenção das pessoas sobre si.
Só lamentava é que não estaria presente para ver as reações daqueles que tripudiaram sobre os seus sentimentos.
Quando desceu as escadas, o barulho dos saltos altos que ressoou pelos degraus de madeira foram os últimos sons de sua presença naquele local.
Abriu a porta que levava à rua e também a trancou atrás de si, do mesmo modo como faria um pouco mais adiante com o portãozinho de ferro de grades torneadas à maneira antiga, presos por duas muretas, típicos das casas da década de 1950.
Não se virou para um último olhar sobre a casa onde vivera por tantos anos.
Como de hábito, jogou as chaves na bolsa que levava a tiracolo.
Dentro do automóvel, ligou o som, colocou os óculos escuros, acertou o cinto de segurança e acendeu um cigarro antes de colocar o carro em movimento.
Ao sair do ponto morto e finalmente engatar a primeira marcha, sentiu-se no tempo presente. Aos poucos foi freando o passado e acelerando para futuro, nesse momento especialmente incerto.
Ao tomar o rumo da saída da cidade, respirou profundamente e pisou no acelerador.
Sua atenção, dividida entre a música e o trânsito, desviou-se da velha casa onde enclausurou lembranças e sonhos.
Dirigiu por horas a fio. Parou apenas uma vez para reabastecer o carro, tomar um café forte e esticar as pernas, as quais, assim como os braços, começavam a apresentar os primeiros sinais de cansaço e dormência.
Horas depois, ficou aliviada ao ver a primeira placa indicativa do aeroporto que escolhera para embarcar, localizado a centenas de quilômetros de sua casa.
Mais um pouco e chegou ao estacionamento do aeroporto. Retirou a pouca bagagem do porta-malas, dirigiu-se ao balcão da companhia aérea e confirmou a reserva, efetuada via internet, na noite anterior.
Antes de embarcar, foi ao banheiro, onde lavou o rosto. Renovou a maquiagem com um batom discreto e um quase nada de azul sobre os olhos.
Conferiu as notas no compartimento secreto de sua bolsa e se deu conta das chaves da casa. Sem hesitação ou remorso, jogou-as na lixeira, juntamente com as do automóvel e o ticket do estacionamento.
Agora, sim, tirou os sapatos, bateu sola com sola antes de os calçar novamente.
Um ligeiro estremecimento somente ocorreu durante sua passagem pela alfândega. O leve temor de que o dinheiro, mais do que o montante permitido, fosse localizado pelos aparelhos detectores de bagagem de mão.
Passou sem problemas pela fiscalização e, novamente de posse da bolsa, embarcou calmamente.
Recusou bebidas e aceitou os jornais oferecidos a bordo. Passeou os olhos sobre as manchetes políticas e econômicas e, ao ver a cotação das moedas, fez um cálculo aproximado da pequena fortuna que levava consigo.
Por pura superstição, não leu o horóscopo, temendo que os astros lhe dissessem que o momento não seria oportuno para mudanças bruscas.
Finalmente o avião terminou de taxiar, ganhou as alturas, furando nuvens e reduzindo as coisas e as pessoas do solo à proporção exata de suas insignificâncias.
Outra vez olhou para o relógio, esticou as pernas, fechou os olhos, preparando-se para as previstas treze horas de voo até Genebra.
(...)
*
Organizadora da coletânea de contos Horas partidas (Penalux/2017) e da Coletânea de contos e crônicas do Movimento Mulherio das Letras (Mariposa Cartonera/2017).
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