Pés Descalços 09| Quando o coração bate mais forte
Meu
filho, pela primeira vez, foi a um velório: pediu para ir. Quis representar suas
irmãs, que estavam fora de Cuiabá, dar um abraço no amigo delas que perdera a
mãe.
Aos
seis ou sete anos de idade, não me recordo bem, perdi o avô materno, que estava
desenganado há meses. Esteve em nossa casa entre uma lamúria e outra, daquelas
idas aos hospitais, até o finado dia em que não saiu mais da rede suspensa entre
as paredes e o telhado.
Havia
uma mesa marrom em madeira compensada no formato retangular com gravuras que
lembravam os nós de uma árvore, e as cadeiras soltando os parafusos, faziam o
jogo de uma mesa de jantar. Era um lugar reservado para visitas, conforme o
gosto autoritário de minha mãe.
Em uma
daquelas manhãs, por volta das nove horas, um pássaro sobrevoou o quintal e pousou na janela, ao lado da rede. Nesse mesmo dia ele se foi. Primeiro o pássaro, depois
meu avô. Mamãe ao ver o mensageiro da morte tratou de espalhar a notícia. Logo
depois falava-se da lavagem do corpo.
Com o cômodo
fechado, fiquei do lado de fora e procurava pelos vãos da parede ver o que
acontecia dentro. Duas ou três mulheres rodeavam o corpo estendido na mesa. Uma
pequena bacia de alumínio e um pano branco completavam o cenário da lavagem.
Lembro
de como era alvo aquele pano que deslizava pelos pálidos pés de vovô. Delicadamente,
titia espalhava-o pelas pernas, virilha, sexo, este tampado por outro tecido.
Depois de limpo, a melhor roupa, e as mãos enlaçadas por sobre o peito. O queixo
entre aberto envolvido por um nó até a cabeça. Velas iluminavam o corpo, derretendo
junto às gravuras, rumo ao chão.
A funerária
chegou com o caixão, vizinhos, parentes e amigos se acomodaram. Eu brincava com
primas e primos, mas percebia a tristeza da perda nos olhos de minha mãe. O
sossego também se estampava no seu rosto depois de tanto tempo de luta.
Uns
rezavam, outros cantavam, havia os que contavam piadas. A noite foi de reencontro com a
família. Desde cedo o aroma do café, as xícaras fumegantes de algum chá somavam à manteiga derretida no pão quente. A hora da despedida se aproximava. Uns dos
cômodos do meu coração esvaziava-se no meio daquela manhã.
O fim
de tarde trouxe um céu bonito, azul, leve com nuvens pomposas para as quais eu
apontava o dedo: “céu, céu, céu, vovô foi pro beleléu!”. O tapa que levei da
mãe me trouxe a seriedade da morte como algo definitivo. “Paivéio, como foi sua
viagem, o que você traz no saco?”. Pareço me lembrar quando fiz essa pergunta a
ele pela primeira vez. Os hábitos mudando com o passar dos anos, conforme as
necessidades. Velórios em capelas padronizam o ritual, dentro das normas sanitárias,
perdendo o caráter intimista do ambiente familiar. Nada parece ser como antes,
absolutamente nada. Aquele cômodo no coração ainda se ressente da ausência de
vovô. Volta e meia sinto uma dorzinha no peito, mas logo passa. E tornam a
voltar de tempos em tempos...
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