UM TRECHO DO PREMIADO LIVRO "TÃO LONGE... TÃO PERTO", DE SILVANA DE MENEZES | Projeto 8M
8M
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão,
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)
Viaje no excerto do incrível livro "TÃO LONGE... TÃO PERTO" (capítulo "Buraco da Fechadura"), ganhador do 64° Prêmio Jabuti, 2° lugar categoria juvenil, da escritora e ilustradora SILVANA DE MENEZES:
ilustração de Silvana Menezes
BURACO DA FECHADURA
O que há do outro lado da Lua? É onde São Jorge refugia-se do dragão? Mas se o outro lado é o lado da frente para outro alguém, então São Jorge não descansa nunca de ser visto? Se os olhos olham pra fora, como é possível ver o lado de dentro? Se vovó via o mundo de dentro com os olhos pra fora, então a gente tem olhos pra dentro também? Talvez por dentro nem fôssemos tão complicados como parecemos. Por dentro somos exatamente... o avesso do que somos por fora. Se é assim tão simples, por que os que vão preferem ficar no lado de dentro, que é só um túnel escuro? Melhor o farol do olho que ilumina noite e dia. E um lado só da Lua ou do Sol.
Não havia como ficar livre dos limites, afinal, eu só conseguia enxergar o que conseguia alcançar pelos sentidos, ou seja, só acreditava no que via com os olhos, ouvia com os ouvidos, sentia o cheiro, o gosto e ainda podia tocar. Nunca pensava nessa coisa chamada alma, que fica dentro do corpo da gente e as pessoas acreditam ser a única coisa que fica depois da morte. Se o corpo de vovó estava morto, ela era só alma? E alma era essa coisa sem graça, sem vida? Que pensamento cruel!
Antes da visita do doutor Alzheimer, vovó sempre fora tão boazinha comigo. Só podia ser ciúmes. Por que ela havia escolhido a Lili e não eu? Talvez tenha sido até bom, um bebê pouco se importa de ver vovó pelada. E se ela só aceitasse que eu trocasse suas fraldas? Ai ai ai... isso não. Melhor manter distância, e muito melhor é ficar olhando pelo buraco da fechadura:
- Bebezinho... ô bebezinho... (Lili sorriu e virou-se rapidamente na cama.) Segura minha mão, assim... Não larga não... Hoje está fazendo tanto frio lá dentro, chega a dar uns arrepios na alma.
- Então por que essa mão quente, chega a estar suando, vovó?
- As mãos estão do lado de fora, bebezinho... Não tem nada a ver com o que me vai por dentro. Com as mãos posso te tocar e você pode me acorrentar, como nesse momento... Só o que me mantém viva é saber que está aí, bebezinho, e segura minha mão. (Lili subiu no colo de vovó e pôs-se a brincar com seus santinhos e amuletos pendurados no pescoço.)
- Por que não pede pra eles te tirarem daí?
- Eles quem, bebezinho?
- (Lili pegou um a um os patuás e santinhos do colar.) Nossa Senhora de Fátima, Coração de Jesus, Iemanjá, Santo Antônio, a pomba, o coelho...
- Está confundindo tudo. Santos são santos e bichos são bichos. Os santos não têm carne e osso. Nunca podemos tocá-los, com as mãos. Conversamos com eles o tempo todo, mas é preciso saber compreender o silêncio vivo, pois os santos são mudos. Já os bichos, bebezinho... Cada um tem sua voz, podemos vê-los, tocá-los, os criamos para que sejam fiéis e submissos e, depois, tiramos-lhes o leite, o couro e a carne do osso. (Lili fez cara de choro segurando o pé de coelho.) O que foi, bebezinho?
- Estou pensando nesse coelhinho que ficou sem o pezinho...
- Coitadinha... Tem o coração tão generoso, meu bebezinho... Como o desse coelhinho que emprestou seu pezinho pra me proteger. Viu? Não era como você estava imaginando. Tudo tem o de dentro e o de fora. Quer sentir uma coisa gostosa? Passe o pé do coelhinho na ponta do nariz. (Lili obedeceu. Acariciou a ponta do nariz com o pé de coelho. Fechou os olhos, sorrou e espirrou.) Gostou?
- Gostei, mas é um pouco fedorento.
- Tsc! Não fale assim, bebezinho. O pezinho do coelho toma banho comigo todos os dias.
- E por acaso a senhora toma banho todo dia, vovó? (Lili desceu do colo e rolou para o chão.)
- Lili? Bebezinho? Onde está você?
- Num lugar onde não pode nem me ver nem me tocar. Prefiro ser santa que bicho. Promete que você nunca vai colocar meu pezinho no seu pescoço, promete?
- Prometo, bebezinho. Agora, vem, fica bem aqui na minha vista. (Lili engatinhou e ficou de pé na beirada da cama.) Sabia que é a coisa mais linda deste mundo, bebezinho?
- Desse mundo aí de dentro também?
- Isso nem eu sei... Vai, me dá sua mão, a mão, viu, bebezinho? Deixo seus pezinhos soltos... (Lili esticou o bracinho e agarrou a mão de minha avó. )
Por essa época, Lili já começava a ficar irritadiça com vovó. Eu até que podia entender, ela estava quase andando livremente com suas duas pernas, como um ser humano, uma santa, e não se contentava mais em ficar de quatro, fiel e submissa, como um cão, ao amor exclusivista de minha avó.
Outro mundo começava a manifestar-se, um lugar colorido, cheio de tentações, sabores, e o que não er real estava lá na telinha da tevê. Além do mais, era um mundo em movimento. Nada daquelas imagens em preto e branco, paradas como uma fotografia antiga, um quadro triste e real. Qualquer coisa era mais interessante pra ela que a companhia de vovó. Foi então que compreendi a dimensão de minha liberdade. Estava preso lá, isso era certo, mas pelo menos não tinha as mãos de minha avó agarradas na minha.
A pobre da Lili era quem sofria mais. Como não adquirira algumas habilidades, tais como abrir e fechar portas, era sempre obrigada a ficar perto de vovó. Por não ter noção de quanto tempo dura o tempo, por alguns momentos ela chegava a se conformar com o lugar triste que lhe reservara o destino, tal qual havia sido com sua avó e sua mãe. Não que isso representasse só um sofrimento: Lili amava vovó. Meu ciúme não era em vão. Enquanto eu me afastava fisicamente, cada vez mais, de minha avó, Lili segurava suas bochechas flácidas, beijava seu cabelo branco amarelado de quem não toma banho todo dia, e ainda segurava sua mão.
Acontece que ninguém pode com o destino. E pelo caminho de Zezé à mercearia cruzou um tal de Chico Barrigudo que conquistou seu coração. Não poucas vezes ela aproveitou minha presença para dar uma escapada. Dizia-me que ia comprar pão, mas eu bem sabia que era uma desculpa. Pela janela eu via quando o Chico Barrigudo beijava sua mão, todo galante, e ela batia o portão de ferro da portaria do prédio.
Quando chegava, estava toda diferente. Zezé ganhou de volta sua graciosidade juvenil, perdida junto com a árdua tarefa de cuidar de minha avó. E não demorou para que o Chico Barrigudo lhe prometesse casa, comida e, acima de tudo, muito amor, até que a morte os separasse, ou unisse (Chico não entendia dessas coisas, solteirão convicto que era até então). Ele não tinha muita coisa, mas os pobres sabem dividir o pouco que possuem. Além disso, criaria Lili como seu verdadeiro pai. Como era muito miúda ainda, ela podia até acreditar que ele era seu pai biológico. Dariam um jeito de mudar o registro de nascimento e tirar o nome daquele irresponsável que nunca quis saber da filha.
Zezé começou a sonhar seu sonho de Cinderela. Era nova ainda, tinha muita vida pra viver, e se vivia e padecia por cuidar de minha avó, por que não cuidar de seu homem amado? Ela estava encantada com a ideia. Sua casa com vasinhos de flores nas janelas, Lili montada na garupa da bicicleta do Chico Barrigudo a caminho da escola, a família toda sentada no sofá da sala assistindo às novelas.
Zezé imaginava que sua vida seria diferente das outras. Sonhava a família tal qual via na televisão, nas novelas a vida é feita só de grandes momentos. Não se perde tempo esquentando o umbigo no fogão e esfriando no tanque. Bem, qualquer coisa era melhor que ficar limpando bunda. Zezé estava certa em optar pela casa e comida do namorado, acrescentando que o principal motivo da escolha nada tinha a ver com casa nem comida. Tanto ela quanto Chico estavam completamente apaixonados, dispostos a viver esse amor.
Se Zezé era só felicidade, a notícia caiu como uma bomba na família. A decisão dela foi considerada um ato de extrema "crueldade".
(...)"
(* in: Tão Longe... Tão Perto, Editora Lê/2007, pp. 67-71)
capa do livro Tão longe... Tão perto
Sinopse da editora Lê sobre livro Tão longe... Tão perto:
"Trata-se de uma história sobre um encontro mágico entre uma vida que vai e outra que fica. Uma avó com mal de Alzheimer, uma empregada e seu bebê, um neto de dez anos são as peças do jogo da vida com as quais a autora lidou, de forma incisiva e emocionada, para falar de distâncias, de fim e de começo."
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
fotografia do arquivo pessoal da autora
SILVANA DE MENEZES é natural de Belo Horizonte/MG, onde vive. Graduada em Belas Artes pela UFMG, é artista plástica, escritora, cineasta e cenógrafa. Possui mais de 40 livros publicados.
Pela Editora Lê (Belo Horizonte/MG), além de diversos outros títulos, publicou as coleções Arquitetos do Universo e Filosofar-te; e o livro Meninas, Bah! (2007), cujo texto foi adaptado para o curta-metragem Mulheres, Bah!, em Portugal.
Em 2008, com o livro Tão Longe...Tão Perto, ganhou o Prêmio Jabuti, categoria Melhor Livro Juvenil e, em 2009 foi finalista do mesmo prêmio, na categoria Melhor Paradidático.
Teve títulos selecionados por vários programas governamentais, além de traduções publicadas na Coréia do Sul e no México.
Também é autora dos seguintes livros infantojuvenis, entre vários outros: Cota, Maricota e Cotinha - as três velhinhas (Cortez: 2006); Pontinho por pontinho: Coco Chanel (Lê: 2009); De quem tem medo o lobo mau? (Elementar: 2009); Signo de câncer (Lê: 2009); Mundo cão (Abacatte: 2010); O pintinho do Lelê (Abacatte: 2010); Cabelinho vermelho e o lobo bobo (Abacatte: 2011); Vanda Vamp - espelho meu, como sou eu? (Elementar: 2012); A ovelha negra da Rita (Cortez: 2013); Finóquio (Abacatte: 2013); Raul e o baú do vovô (Abacatte: 2013); O bebezinho da velhinha (Cortez: 2014), Joana e o pé-de-feijão (Abacatte: 2014); Lucrécia (Cortez: 2014); Os três porquinhos e o lobo barrigudo (Elementar: 2014); Os três porquinhos patetas (Elementar: 2014); Os três porquinhos patetas e o lobo mau-humorado (Elementar: 2017); Téo quer um abraço (Cortez: 2017); Asdrúbal (Canguru: 2017); O vaga-lume (Abacatte: 2017); O confeiteiro de jardim (Imeph: 2017); Comédias e tragédias da vida privada de uma criança (Compor: 2017).
Além de escrever e ilustrar seus próprios livros, possui diversos trabalhos de ilustração de livros de outros autores, como, por exemplo: Histórias de um professor de História (de Ronald Claver, Lê: 2003); Mineragem (de Libério Neves, Lê: 2006); ABZ do amor (de Marcia Kupstas, Cortez: 2009); Brasília: do concreto ao sonho (de Lucília Garcez, Cortez: 2010); Tia, me compra um pastel? e outras histórias (de Fabia Terni, Cortez: 2011); Menina-formiga e menino-girafa: uma história suja de giz (de Anna Claudia Ramos e Tiago de Melo Andrade, Cortez: 2011); Uma aventura no espaço (de Iara Jardim e Marcos Calil, Cortez: 2012); A menina que engarrafava nuvens (de Tânia Costa Garcia, Compor: 2013); Asa de passarinho (de Líria Porto, Lê: 2014); Garimpo (de Líria Porto, Lê: 2014); O segredo da caverna (de Wagner Bezerra, Cortez: 2015); Cômicos cotidianos (de Nelson Albissú, Cortez: 2015); Filomenos, o cabrito aflito (de Anderson Novello, Cortez: 2018); Os 3 palitos (de Ana Neila Torquato, IMEPH: 2018); O cão azul e outros poemas (de Gláucia Lemos, Formato: 2019); O elefante e a bolinha de sabão (de Manuel Filho, Cortez: 2019); Letrinha por letrinha (Lucinda Azevedo, IMEPH: 2019); O gato da árvore dos desejos (de Tadeu Sarmento, Abacatte: 2021); Sundiata: o filho de Sogolon (de Tadeu Sarmento, Compor: 2022); A estranha pulga do Planeta Rex (de Anderson Novello, Ciranda Cultural, 2022), entre inúmeros outros títulos.
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