Minha Lavra do teu Livro 05 | "VIVÊNCIAS EM BIBLIOTERAPIA", de CRISTIANA SEIXAS, por Nic Cardeal

Minha Lavra do teu Livro 05
- resenhas afetivas - 


UM LIVRO DE SOBRE(VIVER): 

"VIVÊNCIAS EM BIBLIOTERAPIA: 

 PRÁTICAS DO CUIDADO ATRAVÉS DA LITERATURA"


"As palavras podem abrir feridas, 
mas também cicatrizam as chagas. 
A palavra não sangra, a palavra cura. 
A palavra liberta a dor. 
E quando escrita, a dor nos pacifica. 
A palavra é flor fechada quando dentro de nós. 
Escrever é deixar a flor se abrir. "

(Bartolomeu Campos de Queirós, 
in: 'Para ler em silêncio')

Fechar a última página de um livro faz a alma ter sensações muito paradoxais. Ao mesmo tempo parece que estou à beira de uma certa ‘felicidade clandestina’ (clariceando meu dizer), mas também estou às margens de uma súbita tristeza. Missão cumprida e saudades do que acabei de deixar nas páginas logo ali atrás. Foi assim que me senti após 232 páginas lidas, algumas delas relidas, anotadas, sublinhadas, como se degustasse um prato raro, profundamente delicioso. VIVÊNCIAS EM BIBLIOTERAPIA: PRÁTICAS DO CUIDADO ATRAVÉS DA LITERATURA, da psicóloga, biblioterapeuta e contadora de histórias, CRISTIANA SEIXAS (Niterói/RJ: Edição da autora, 2014) é um desses ‘pratos’. Fundo, vasto, talvez beirando infinitos, que faz profundezas na alma da gente. Há um só tempo, também prático, apaixonado, apaixonante, que faz vibrar em nós cordas internas nunca tocadas, fazendo soar desejos inusitados de buscar leituras, leituras e mais leituras, numa verdadeira orquestra de páginas absorvidas, em que um livro é, ele mesmo, uma espécie de terapeuta, um remédio onde palavras ditas nos conduzem a novos caminhos para o cuidado do coração e da alma! Um guia, uma ponte, uma bússola, um farol, tudo isso junto e misturado!
 
Cristiana Seixas navega “nas águas infinitas das palavras” (p. 12), como ela mesma diz, para demonstrar que um livro não é apenas um simples livro, mas um grande transformador de universos (nossos universos individuais ou coletivos!).
 
Nas palavras muito bem prefaciadas por Maria Inez do Espírito Santo (autora de ‘Vasos sagrados: mitos indígenas brasileiros e o encontro com o feminino’), Cristiana tece “um manto bordado e rebordado com o que existe de mais precioso nos (quantos!) livros que a alcançaram. Sim, porque são eles que nos buscam e se deixam abraçar, se a gente se oferece para o encontro” (p. 9)!
 
Sim, a autora é uma exímia garimpeira de livros ‘curadores’, utilizando-os tanto em suas práticas psicoterapêuticas clínicas, quanto em círculos de leituras, contação de histórias, cafés-concerto literários, ou clubes de leitura. E, nesse múltiplo fazer, vai em busca dos mais variados ‘medicamentos literários’ para compor sua ‘farmacinha’: navega por Fernando Pessoa, Mario Quintana, Clarice Lispector, Mia Couto, Cora Coralina, Gaston Bachelard, Clarissa Pinkola Estés, Oscar Wilde, Thiago de Melo, Paulo Leminski, Florbela Espanca, Manoel de Barros, Fiódor Dostoiévski, Albert Camus, entre tantas e tantas outras ‘águas’, no desejo profundo de trazer o nosso ‘mar’ interior de volta ao ‘curso’ do pleno viver!

Para Cristiana, que é psicoterapeuta e o livro é uma  de suas melhores ferramentas de cura, "(...) o ápice do processo biblioterapêutico é quando o leitor se torna autor. O incentivo à leitura desperta as próprias histórias. A escrita criativa é fomentada no processo e há encontros programados para partilhar produções de própria autoria. Não há o compromisso com o valor literário, estética ou qualquer outra variável. O pacto é com a expressão, em deixar fluir, colocar para fora aquilo que não quer calar, que borbulha, que busca saída. (...) Se escreveu, a pessoa foi capaz de criar um espaço para mergulho em si mesma e provocar uma saída da expressão. E este é um ato de coragem extrema e transgressão de um grande fluxo de alienação. Muitos passam a vida fugindo e sendo vítimas do que não é olhado, reconhecido e cuidado. Quando o que incomoda sai para o papel já é um alívio. Se publicado, o sentimento é de exorcismo, como num parto das entranhas, um processo de deixar partir, de fazer a travessia para a cicatrização e libertar-se (...)" (pp. 32-33).

De acordo com a escritora, "os livros e as palavras são como os barcos que auxiliarão nas travessias necessárias, seja em mar calmo ou no meio das tempestades" (p. 37). Assim, se nos encontramos à deriva, prestes aos  tantos naufrágios tão comuns do viver, é certo que podemos contar com a palavra - e com o livro - como balsas, boias, barcos, a nos dar apoio e guarida na busca pela compreensão dos caminhos mais possíveis.

Assim senti Cristiana nestas páginas: uma exímia ‘timoneira de barcos’, aquela estrela-guia [estrela do céu, estrela-do-mar, estrela de todos os lugares possíveis de se fazer brilhar!], que nos conduz nas águas certas e necessárias para a compreensão constante desses mares internos, em seus rasos ou profundos transbordamentos de viver! E se, dentro de mim sou um oceano de funduras inconclusas, dispersa em águas revoltas ou profundas, paradas ou rasas, posso agora ficar repleta de esperanças, porque somos todos águas, onde “navegar é preciso”, onde “sou puxado por ventos e palavras” e, de fato, lá no fundo, bem no fundo, nós todos sabemos a hora certa de nos lançarmos a partir na extraordinária viagem por nossos horizontes do existir! Como citou a própria Cristiana, “perto de muita água, tudo é feliz” (de Guimarães Rosa, p. 125).

(Nic Cardeal)


capa do livro Vivências em Biblioterapia 

Um excerto do livro Vivências em Biblioterapia:

"[...]

Costurando com linhas
psicológicas


Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já 
passou por ele antes de mim.
Freud (1913)


Das linhas psicológicas, a que mais vibra em ressonância com as práticas em biblioterapia, em minha opinião a partir das vivências e pesquisas até o momento, é a psicologia arquetípica de James Hillman. No livro Re-vendo a psicologia, ele expõe seus principais fundamentos, que apresento em síntese a seguir.

Sua premissa central é o processo dinâmico de cultivo da alma. Como somos feitos da matéria de nossos sonhos e ideias, somos tomados e formados por imagens.

Como a fantasia da doença, em primeiro lugar, é fantasia (e não doença), então tratar a fantasia requer uma terapia que tenha seu foco na fantasia (e não na doença). [...] Toda fantasia diz algo sobre a alma.
  James Hillman (2010, p. 173)

E, para que isto aconteça, há que se abolir qualquer forma de literalismo. Significados literais geram imagens fixas que são inerentemente falsas, pois únicas. Esta abordagem considera o poder encantatório das palavras como veículo, entendidas como aquelas que tocam a emoção: um indicador de movimento da alma.

Os sintomas, o caos, a aflição, o despedaçamento, são vistos, nesta perspectiva, como demonstrações da psique, processos inerentes do cultivo de alma, portas de acesso à profundidade, consciência que potencialmente acionam revoluções. 

Através da depressão adentramos a profundidade, e nas profundidades encontramos alma.
James Hillman (2010, p. 208)

Para cuidar e cultivar a alma, faz-se necessário criar um espaço de escuta (em que o bizarro, o decaído, o fantástico são acolhidos), onde estas imagens profundas guardadas de seus monstros, forças e medos possam ser derramadas e cozidas o tempo necessário para que seus significados emerjam. Hillman defende que este espaço não é, necessariamente, num consultório clínico. Ele cita que a psicologia clínica é um "resquício do modelo médico". O "psicologizar" (criar espaço para refletir sobre as próprias angústias) é algo que acontece intermitentemente na busca por alma. O próprio "psicopatologizar" (a psique criando patologias) é uma linguagem da alma que, através da expressão do sintoma patológico, diz que algo precisa ser visto e transformado.

Em meu sintoma está a minha alma.
James Hillman (2010, p. 221)

A ferida e o olho são um só. 
James Hillman (2010, p. 223)

Importante é dar um continente para a psicopatologia. As artes em geral (literatura, pintura, música, dança e outras expressões) são modos de visitar nossa loucura e dar um receptáculo para as imagens que nos governam. Uma via possível para a sanidade.

Servir à alma implica deixá-la reinar,
ela conduz, nós a seguimos.
James Hillman (2010, p. 166)

Chama-se psicologia arquetípica, pois acredita que as ideias remetam a estruturas arcaicas da psique: os arquétipos.

[...] eu nunca tenho, de fato, ideias, elas me têm, me suportam, me contêm, me governam. Nossa luta com as ideias é um combate sagrado.
[...] quando a esses deuses e demônios não é dado reconhecimento e lugar apropriado, eles se tornam doenças.
James Hillman (2010, p. 62)

Os arquétipos são as raízes mais profundas que sustentam nosso funcionamento psíquico. Olhar para eles, reconhecê-los e dialogar com estas forças são um caminho para engendrar alma e gerar insights de novas perspectivas e ações no mundo.

Assim sendo, em minhas práticas, o que busco é essencialmente este cultivo da alma. Em que imagem ou fantasia a pessoa que me procura se cristalizou? O que esta alma clama? Quais são as mensagens das "sombras" que exigem luz e voz? Que fome não está sendo saciada? Incentivando a liberdade de imaginar a liberdade, indo ao encontro das poéticas da alma, através da literatura e materiais expressivos, criamos uma parceria em busca das imagens e palavras essenciais para sua nutrição.

Psicologia significa idealmente dar alma para a linguagem e encontrar linguagem para a alma.
James Hillman (2010, p. 410)

[...]"

(pp. 109-111)


fotografia do arquivo pessoal da autora 


Sinopse do livro Vivências em Biblioterapia:

"Apoiada numa visão de Psicologia como “o cultivo da alma”, a psicóloga Cristiana Seixas dedica-se a “desatar os nós do ser” por meio da Biblioterapia.

Neste livro, apresenta os caminhos que vem percorrendo nessa área de conhecimento.

Partilha com o leitor textos utilizados em sua prática de consultório e em outras atividades de leitura que iluminam sentidos e sentimentos.

Vozes de muitos escritores entrelaçam-se à poeticidade da voz da própria autora.

Obra essencial para qualquer pessoa que se identifique com a riqueza da literatura de todos os lugares e tempos. Para quem arte é uma necessidade vital, um instrumento de transformação interior, de encontro consigo e com o outro."


fotografia do arquivo pessoal da autora 


CRISTIANA SEIXAS é psicóloga, biblioterapeuta e contadora de histórias. Graduada em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá (2010); especialista em Arteterapia pela Clínica POMAR (2016); e mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (2018). Trabalha em psicoterapia, com ênfase em práticas de biblioterapia, desde 2010. Atuou como focalizadora do Curso de Extensão "Danças circulares dos povos" na UFF, de 2017 a 2019. 

Livros publicados: Vivências em biblioterapia: práticas do cuidado através da literatura (Niterói/RJ: Edição da autora, 2014); e Biblioterapia: cais de sopros vitais (Niterói/RJ: Cândido, 2021).

Participação em antologias e coletâneas: Gavetas acesas (org.: Cristiana Seixas, Niterói/RJ: Clube dos autores, 2015); Relíquias (org.: Cristiana Seixas, Niterói/RJ: Edição dos autores, 2016); Brumas e brisas (org.: Cristiana Seixas, Niterói/RJ: Cândido, 2017, Coleção Biblioterapia, 2); Vicejantes (org.: Cristiana Seixas, Niterói/RJ: Cândido, 2018, Coleção Biblioterapia, 4); Sumo (org.: Cristiana Seixas, Niterói/RJ: Cândido, 2019, Coleção Biblioterapia, 6); Práticas integrativas e complementares no SUS: o reconhecimento de técnicas milenares no cuidado à saúde contemporânea (orgs.: Vera Freitag e Marcio Badke, Curitiba/PR: Nova Práxis, 2019); Quintais da biblioterapia: experiências na poética do cuidado (org.: Cristiana Seixas, Niterói/RJ: Nome Próprio, 2020, Coleção Biblioterapia, 8); Céu da boca (org.: Cristiana Seixas, Niterói/RJ: Nome Próprio, 2020, Coleção Biblioterapia, 10); entre outras.




 
                 

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