fotografia do arquivo pessoal da autora
8M (*)
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão,
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)
Viaje na palavra marcante e, tantas vezes aventureira, de CLARA ARREGUY:
1)
"(...) Histórias, memórias, lembranças, alforjes cheios de lições aprendidas, vazios de inutilidades deixadas pra trás. Xô, sentimentos pequenos e pobres, xô, fantasias do passado, anseios de ser o que nunca será, de ter o que nada lhe trará paz, de resgatar o tempo perdido - como perdido, se tudo que fez e foi concorreu para trazê-la até aqui, ao alto desta manhã ensolarada em que um banho de mangueira e uma dúzia de paraguaios, a deliciosa fruta importada sabe Deus lá de onde, vão lhe salvar a vida mais uma vez. Entrar no carro, tirar a sapatilha, as meias, a blusa molhada de suor e da água da mangueira do posto de gasolina, tirar a bermuda, a calcinha e o sutiã e vestir o mais leve vestidinho, sem nada por baixo, até que cheguem a algum lugar onde um banho de verdade complete o serviço, por que se arrepender de ter percorrido todo o chão dos seus cinquenta anos se ele te conduzia até aqui, até esses lugares, essas pessoas, essas vivências, esse amor maduro, essa confiança em que o homem que lhe estende a mão e se senta com ela na sombra mais exígua do meio-dia europeu vai esperar com ela até que chegue o socorro, e se não chegar, não a deixará morrer de insolação nem de inanição. Não sem antes lhe dar um beijo, chamá-la de gostosa e dizer que não a abandonará.
Ele tem carinho, ele tem cuidados, ele tem água no cantil, ele tem reservas no camelback, ele tem até uma balinha no bolso caso ela sofra uma baixa de glicose. Ele tem paciência e tem um sorriso guardado na algibeira para tirá-la do fundo do poço.
Só que ela não está mais no fundo do poço. Está prestes a ganhar o penúltimo posto de parada antes de chegar a Santiago de Compostela. No mapa era para ser Portomarín, Palas de Rei, Arzúa. Mas passam pelas cidades marcadas e seguem adiante, enquanto as pernas aguentarem. Vão parar numa pequena cidade, Furelos, onde um dia um homem sem fé conheceu um padre que o ouviu em confissão e lhe deu o suporte para seguir seu destino. Esse homem vai ao encontro desse santinho e fica sabendo pelas mulheres da paróquia que ele morreu. Levava para ele um presente. Deixa o presente com as beatas, benze-se e se vai.
Em Furelos, não tem onde se hospedar. Mas há um belo parque, vazio, e uma certeza: de que não serão molestados se acamparem por ali mesmo, no estacionamento, à beira das árvores e de uma piscina pública fechada. A noite já caiu, não tem alternativa. Dão apenas uma chegada ao centro da cidade para um lanche ao som da conversa galega dos proprietários. Entendem quase tudo, porque o diálogo é cheio de riba pra dizer alto, albergaria pra dizer hospedagem, por aí afora. Parece interior de Minas. É a Galícia, com seu lindo dialeto musical cruzamento de português com espanhol e seus nomes de cidades como A Brea, A Pereira e sua vizinha, A Pereirinha... Comem sanduíches fartos, pizza, se empanturram de tanto comer, e voltam para o cantinho no parque na entrada da pequena Furelos. A noite está tão agradável que Dedé mais uma vez troca o interior do motor-home pela barraca ao ar livre. Só quem não se alegra muito com o pouso daqueles peregrinos de Brancaleone são os amantes secretos que costumam usar o local para uma fodinha discreta na zona rural. Ao longo da noite, várias vezes se assustam com a entrada de um carro no estacionamento, faróis que cruzam as janelinhas, dão meia-volta e perdem a caminhada. Foda adiada é foda perdida, diz o ditado. Nem para todos foi uma boa noite.
(...)"
(* excerto do livro Siga as setas amarelas - de bicicleta no caminho de Compostela, pp. 132-134)
capa do livro Siga as setas amarelas
-*-
2)
"(...) Não virá socorro. Ninguém virá me salvar. Não há heróis, nunca houve super-heróis, de nada adianta gritar por ajuda. Quem virá me acudir? Ninguém, ninguém. Deus está de férias. As forças da natureza, os deuses das minhas amigas, a Deusa, a força maior, as energias do universo não conspiram a favor de nada. Ninguém me ouve. Ninguém nos ouve. Estou só, profundamente só, só no sentido mais exato da palavra solidão. Nascemos sós e morremos sós e nada nunca vai alterar esta questão: um mais um é igual a um. E um é igual a zero. Zero elevado a qualquer coisa.
Estou no lugar errado, ao lado das pessoas erradas, fazendo o que não queria fazer, onde não gostaria de estar em hipótese alguma, onde jamais estaria por escolha própria. Não há lugar pra mim. Não há onde eu quisesse estar. Nowhere. Será que isso corresponde a um desejo de morte? O não desejo, o não lugar, o sem jeito e sem futuro.
Um retumbante e ensurdecedor silêncio ecoa pelo céu. Quem me salvará de mim? Quem me salvará do mundo? Ninguém salvará o mundo do fascismo, do capitalismo selvagem, da dominação corporativa, da globalização escravizadora, da pasteurização da cultura, da quadrilha de predadores que tomou de assalto o planeta e sabotou qualquer chance de um mundo melhor. Futuro não há.
Deu ruim. Deu mal. Deu tudo errado. O projeto do Grande Designer começou a derreter no sétimo dia, assim que ele parou para descansar. Agora ele resta em férias eternas, ou foi cuidar de outro quadrante da galáxia. Por aqui nunca mais pôs os pés, não passou nem para um alô sem compromisso. Que Deus, que Deusa, que iluminação essencial, que útero abençoado, que nada! Nada, nunca, ninguém. Never more, never more...
(...)"
(* excerto do livro Estrelas de pés no chão, p. 51)
capa do livro Estrelas de pés no chão
-*-
3)
"(...) – Fabrícia, preciso te agradecer. Claro que a 'culpa' não é sua, mas suas aulas estão sendo fundamentais pra me abrir os olhos. Acabo de me separar do pai dos meus filhos. Você não calcula com que dor estou descobrindo, não apenas o tanto que era infeliz, mas que nunca havia sido. Aquele homem nunca me respeitou, sempre me tratou como uma criança tola e burra. Nunca me amou como eu queria e merecia. Ele só me mantinha sob seu cabresto, me usava sem afeto como empregada, como fêmea, e olhe lá... Ô, meu pai, estive nessa luta aí nas últimas semanas, mas agora me libertei e entendi que posso ser feliz. Mesmo já estando velha e passa do tempo pra essas coisas.
- Que coisas, Nicete? Vocé é bonita, inteligente e dona do seu nariz. Ainda pode, sim, buscar o que quiser, seja profissional, seja afetivamente. Não permita que os discursos rancorosos de um machista te toquem nem te tolham. Vá se ser feliz!
O abraço apertado e sincero daquela mulher me fez ganhar o dia, o mês, o ano. Se tenho que passar pelo calvário que estou passando diante do avanço da repressão e da escuridão, respostas como a de Nicete iluminam de esperança a ação do professor.
(...)"
(* excerto do livro O quarto canal)
capa do livro O quarto canal
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
fotografia do arquivo pessoal da autora
CLARA ARREGUY (Maria Clara Arreguy Maia) é natural de Belo Horizonte/MG e reside em Brasília/DF. É jornalista, escritora, redatora, editora e revisora. Atuou em assessorias de imprensa e como repórter do Estado de Minas, além de fazer matérias como free lancer para vários veículos de comunicação. Mudou-se para Brasília em 2004, para assumir o cargo de Editora de Cultura do Correio Braziliense. Criou e dirige a 'Outubro Edições', por meio da qual publica livros próprios e de outros autores. É integrante do movimento Mulherio das Letras e vice-presidente do Instituto Cultural Casa de Autores - Brasília/DF. Mantém o blog literário www.outubroedicoes.com.br.
Livros publicados: Segunda divisão (juvenil, esportes, Rio de Janeiro/RJ: Editora Lamparina, 2005 e 2016); BH, a cidade de cada um - volume 5: Fafich (memórias, Editora Conceito Comunicação, 2005 e 2014); Tempo seco (romance, história política, Paulo/SP: Geração Editorial, 2009); Rádio Beatles (romance, beatlemania, Brasília/DF: Outubro Edições, 2011); O planeta das flores amarelas (crônicas, Brasília/DF: Outubro Edições, 2011 e 2016); Isaulina (conto, Brasília/DF: Outubro Edições, 2014); Siga as setas amarelas - de bicicleta no caminho de Compostela (ficção da vida real, Brasília/DF: Outubro Edições, 2014 e 2021); Sonhos olímpicos (infantojuvenil, esportes, Juiz de Fora/MG: Franco Editora, 2015); Dia de sol em tempo de chuva (relações entre Portugal e Brasil, São Paulo/SP: Chiado, 2015); Cheio de graça - uma biografia de José Henriques Maia (biografia, Brasília/DF: Outubro Edições, 2015); Catraca inoperante (crônicas, Brasília/DF: Outubro Edições, 2016); Oit Labina (infantil, Brasília/DF: Outubro Edições, 2016); 1974 (história política, Brasília/DF: Outubro Edições, 2016); Memória para esquecer (romance, Brasília/DF: Outubro Edições, 2017); A vovó fala tudo errado (infantil, Brasília/DF: Outubro Edições, 2017); De todo coração: a biografia de Anna Maria Costa de Araújo (biografia, Brasília/DF: Outubro Edições); Três contos de Natal (infantojuvenil, contos, com Simão de Miranda e Glória Arreguy, Brasília/DF: Outubro Edições, 2017); Verde, vermelho, amarelo (infantil, Brasília/DF: Outubro Edições, 2018); A partida da Sorte (infantojuvenil, Brasília/DF: Outubro Edições, 2018); Estrelas de pés no chão (feminismo, memórias, Brasília/DF: Outubro Edições, 2018); Bola dentro, um furo de reportagem (infantojuvenil, esportes, Brasília/DF: Outubro Edições, 2018); A viagem de juju (infantil, Editoral Elementar, 2019); Yawalapiti, filhos da natureza (Brasília/DF: Outubro Edições, 2019); O passeio do Lloyd (infantojuvenil, Brasília/DF: Outubro Edições, 2019); O quarto canal (romance, Brasília/DF: Outubro Edições, 2020); Futebola - crônicas sobre as Copas de 2018 e 2019 (com Fernanda de Aragão, crônicas, esportes, Brasília/DF: Outubro Edições, 2020); O dicionário amoroso da Nini (memórias, Brasília/DF: Outubro Edições, 2020); Rosa dos ventos (crônicas, Brasília/DF: Outubro Edições, 2021); A família comedeira (infantil, Brasília/DF: Outubro Edições, 2021).
Participação em antologias e coletâneas: Coletânea Todas as gerações – o conto brasiliense contemporâneo (org. Ronaldo Cagiano, LGE Editora, 2006); Mulherio das Letras DF - Caminhos da palavra (com mais 15 autoras, Brasília/DF: Outubro Edições, 2020); entre outras.
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