Minha Lavra do teu Livro 09 | "ABISMOS E ASAS", de ELIANE CAMPOS, por Nic Cardeal
- resenhas afetivas -
"ABISMOS E ASAS":
A TERAPIA DO LIVRO
NA SUPERAÇÃO DA DISLEXIA
"- Tem algum remédio para dislexia?
- Ler livro diariamente!"
(Eliane Campos)
ABISMOS E ASAS: UMA JORNADA - DE DISLÉXICA A TERAPEUTA DE DISLÉXICOS (Eliane Maria Fernandes Campos, Porto Alegre/RS: Dialogar Editora, 2021) é um livro marcante, pois trata da 'dolorosa' trajetória de uma criança mal compreendida em suas dificuldades cognitivas e de linguagem, e que, apesar delas, conseguiu transformar suas vivências em ensinamentos preciosos para ajudar no processo de aceitação e evolução de outras crianças e jovens também disléxicos, através de um 'instrumento de trabalho' encantador: o LIVRO!
Em sua narrativa, Eliane escancara seu coração com coragem e doçura - às vezes com lágrimas desavisadas, mas necessárias, outras, com leveza e alegria -, sabendo que o lúdico é um dos melhores companheiros para a criança compreender e aceitar seus processos de crescimento e percepção da realidade tal como se apresenta - sempre tão única!
Há muitos que ainda não sabem o que é dislexia, pois jamais tiveram acesso ao tema, outros que, mesmo conhecendo o assunto, nunca conviveram com disléxicos. Jaime Zorzi - fonoaudiólogo, doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - que apresenta a obra de Eliane, assim escreve: "A dislexia é definida como um transtorno do neurodesenvolvimento que produz déficits cognitivos e linguísticos que prejudicam, em graus variados, a aprendizagem da leitura e da escrita, na ausência de alterações neurológicas, sensoriais ou motoras que justifiquem as alterações observadas" (p. 9). Desta maneira, o que se observa, na prática, são diversas dificuldades, e em diferentes níveis para cada indivíduo, no que se refere aos sons das palavras e suas associações com as letras ou sequências de letras representativas desses sons.
Eliane inicia sua narrativa por meio de lembranças da infância, quando, embora não soubesse que fazia parte de uma estatística - hoje, cerca de 10% da população mundial na condição de disléxica -, sentia-se 'diferente': "Quando menina, enfrentei grandes tempestades. Algum raio atingiu o meu cérebro antes de eu nascer. Ele é diferente daquele do normaléxico. Muitos adultos foram trovões na minha vida de criança. Era uma chuva incessante de dificuldades, os ventos, sempre do contra, impediam que eu me apropriasse da leitura e da escrita. Eu teria um abrigo no Castelo Encantado do Livro, mas, por não saber ler, não podia entrar. Durante a infância e a adolescência, vivi um inv(f)erno que parecia não ter fim e penetrei nas profundezas sombrias do mundo do disléxico" (p. 17).
Relata que foi uma criança que colidia com objetos ou chegava mesmo a derrubá-los, que escrevia devagar, que custou a aprender a fazer laços, pulava corda com dificuldade, também pulava palavras e linhas na leitura. Conta que tinha dificuldade em pronunciar palavras de muitas sílabas; esquecia facilmente de outras palavras e de nomes de certas pessoas; não conseguia aprender cantigas de roda e pequenos poemas; não memorizava a ordem das letras, os meses e as estações do ano, os dias da semana, a sequência do alfabeto, nomes de remédios ou números muito grandes, embora se saísse sempre muito bem em matemática.
A autora se desnuda de quaisquer constrangimentos - novos ou antigos - confessando suas 'fragilidades' de criança, de adolescente, ou mesmo de adulta. Sim, diz que chegou a sentir inveja de quem escrevia com facilidade, como a colega de faculdade, que deslizava suas "mãos mágicas" sobre o papel, sem interrupções durante a prova. E admite: "Meus textos não eram elegantes, pois se apresentavam carentes de pronomes oblíquos, adjetivos, conjunções, acentos... Tinha dificuldade para pontuá-los. Ponto e vírgula, eu pensava: "Para que isso?". Quando lia José Saramago, não sentia falta da pontuação. Há um tempo, dediquei-me a estudar esse assunto. Tornei a ler Saramago e senti falta dela nas primeiras páginas. Graças a Deus, só nas primeiras páginas! Logo voltou a sintonia com o querido escritor." (pp. 25-26).
Para Eliane a fala é leve, mas a escrita, muito pesada! Chegou a fazer psicanálise durante anos, o que lhe deu suporte para realizar-se na escrita. Conta que alguns pesquisadores das dificuldades e transtornos de aprendizagem lhe deram apoio e incentivo para esse livro de memórias. Também faz questão de registrar: "E a escritora Maria Valéria Rezende disse: "E viva minha amiga 'disléxica' que escreve tão bem e tem tanto pra contar!" (p. 28).
Talvez as lembranças mais tristes para uma criança disléxica sejam, de fato, as da primeira escola, onde por certo o terror da dislexia finalmente se dá por percebido publicamente, ainda que em muitos locais tal 'condição' possa não ser diagnosticada de imediato. Eliane sabe muito bem disso, pois escreve: "A lembrança que tenho de minha primeira escola é de um lugar sombrio, com um quintal árido, que me dava medo. (...) Eu tinha quatro anos. Naquela sala de jardim de infância havia crianças de cinco anos e, talvez, de seis. Para minha infelicidade, a professora queria nos alfabetizar. Já é um trabalho HERCÚLEO aprender a ler e a escrever aos quatro anos; sendo disléxico, nem Hércules conseguiria" (p. 31). As memórias desse período são deveras doloridas, pois a menina Lili passava tantas vergonhas que acabou se transformando em uma criança tímida. Porém, embora se sentisse tímida, com o passar do tempo tornou-se tagarela, pois gostava de conversar com os colegas e com os adultos. Além de todas as dificuldades enfrentadas por ser disléxica (sem saber desse realidade!), perdeu o pai (que faleceu jovem, aos 45 anos), alguns dias antes de prestar vestibular para Psicologia, e relata que "ele sempre repetia que eu não sabia de nada e morreu sem saber que a filha dominava muitas coisas" (p. 38). E Eliane acabou sendo aprovada na Universidade Federal de Pernambuco em 14° lugar!
Escreve que ainda hoje tem diversas dificuldades, como, por exemplo, andar em linha reta, distinguir o lado direito do esquerdo, e não se arrisca a aprender a dirigir, pois sua noção espacial deixa muito a desejar. No entanto, sente-se vitoriosa pois superou muitos obstáculos, conseguindo inclusive aprender a pedalar, apesar das quedas! Registra que "a bicicleta, como o livro, dá-nos a sensação de liberdade. Ao andar de bicicleta, consigo ver determinados lugares da cidade que nunca havia observado; ao ler, consigo ver lugares secretos da minha cidade interna. O livro e a bicicleta são brinquedos da infância que podem nos acompanhar durante toda a nossa vida" (p. 56).
O livro de Eliane é fundamental não apenas para que crianças e jovens disléxicos compreendam melhor a si mesmos, como contribui especialmente para os pais, professores e terapeutas de disléxicos, pois demonstra o quão importante é o 'instrumento LIVRO' no crescimento e desenvolvimento educacional de uma pessoa disléxica. Além da dislexia, ela também explica as demais comorbidades que geralmente a acompanham: a disnomia ("disfunção da linguagem que se reflete na incapacidade em nomear pessoas" ou lembrar "os nomes de algumas pessoas" - p. 47); a dispraxia ("transtorno de desenvolvimento da gestualidade" - p. 51); a disortografia ("transtorno específico de aprender a escrever de acordo com as regras ortográficas" - p. 59); e a disgrafia ("transtorno específico de aprendizagem, caracterizado por alteração funcional no componente motor do ato de escrever, comprometendo o traçado correto de letras e outros sinais gráficos em um espaço definido" - p. 63).
A autora conta que só descobriu ser disléxica quando já estava cursando a graduação em Psicologia - e foi na disciplina de 'Lógica em Filosofia'. Hoje agradece, pois diz que essa condição "me fez estudar Psicologia e me especializar na aquisição da leitura e da escrita. Como diz Confúcio: "Escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida". A minha missão de vida é conquistar crianças e adolescentes para o Mundo da Leitura" (p. 70).
Segundo Eliane, um disléxico será sempre disléxico. Ou seja, ela sabe que essa 'condição' a acompanhará por toda a vida, embora tenha obtido enorme êxito nas atividades de escrita e leitura graças aos livros - seus melhores companheiros de vida e seus principais instrumentos no trabalho terapêutico que desenvolve com crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem. A psicoterapeuta, que possui graduação em Psicologia e pós-graduação em Neuropsicologia, além de também atuar como Psicopedagoga, dedicou-se a estudar a dislexia, por isso mesmo diz com propriedade: "A dislexia é fiel; vai me acompanhar do nascimento até a morte. Como não é possível dela me desvencilhar, o melhor caminho é tentar compreendê-la. Este livro é um estudo longitudinal de uma disléxica e nele sou o sujeito e a pesquisadora" (p. 106).
Eliane conclui que a leitura, na infância considerada um demônio, passou a ser de seu domínio graças a um anjo chamado Livro: "Quando, enfim, aprendi a ler, encontrei um anjo chamado LIVRO, que me acompanha até hoje. Com ele, ajudo as crianças disléxicas a dominarem a leitura e a não se sentirem diferentes dos coleguinhas, favorecendo, assim, seu sucesso na aprendizagem em geral" (p. 113). E complementa: "Uma amiga me perguntou: "Tem algum remédio para dislexia?". Eu disse: "Ler livro diariamente". O livro é um remédio de uso contínuo, sem contraindicação. Na infância, automediquei-me e salvei-me" (p. 125)!
Essa obra é como uma bússola a apontar excelentes caminhos para desenvolver o gosto, o amor, a paixão pela leitura - pois, além de a autora ter sentido na pele as variadas dificuldades que enfrentou (ou ainda precisa enfrentar), na condição de disléxica - demonstra que é possível superar tais obstáculos com a utilização sistemática de um poderoso instrumento: o livro! Praticada diariamente, a leitura possibilita ao 'usuário de tal instrumento' maior fluência, precisão, velocidade, expressão, cadência, entonação e ritmo. Além disso, torna o leitor cada vez mais apto ao domínio da palavra escrita, pois adquire maior coesão e coerência textual.
Enfim, Abismos e asas é um livro surpreendente - não perca essa leitura! Digo isso com conhecimento de causa: em 2012 também fui diagnosticada com um certo grau de dislexia. Segundo o diagnóstico da neurociência, meu cérebro - desde muito cedo - achou um 'atalho' para lidar com a questão da dislexia, adaptando-se e conseguindo superar o problema por outros meios, de modo que não fiquei com sequelas aparentes. Ou seja, parece que fui 'salva' por algum desvio de padrão cerebral! Talvez por isso eu tenha tanto fascínio por bibliotecas, livrarias - 'casas' onde dorme, acorda, fala e silencia a palavra, o livro aberto, a caneta esperando o movimento - do coração!
Como diz a grande poeta Roseana Murray, no prefácio do livro: "Ler todos os dias, porque os livros são casa e comida e não podemos viver ao relento" (p. 13)!
(Nic Cardeal)
capa do livro Abismos e asas
Prefácio do livro Abismos e asas:
"Eliane, que quando criança tropeçava nas palavras como se fossem pedras, como se fossem teias que prendessem suas frases em armadilhas, que trocava letras, nomes, para quem muitas palavras teimavam em se ausentar, me conta:
É disléxica.
E o que a salvou foram os livros. Quando finalmente começou a ler, lia todos os dias.
Todos nós, leigos, já ouvimos falar sobe a plasticidade do cérebro. Podemos moldá-l, melhorá-lo, e a leitura, neste caso, é a grande ferramenta.
Os textos deste livro narram a experiência desta travessia:
Passar de disléxica a terapeuta de disléxicos, tendo o livro como seu principal aliado.
São textos simples e belos, com uma grande carga de emoção e poesia.
Eliane dá a receita que, sem ser disléxica, sigo desde que aprendi ler.
Ler todos os dias, porque os livros são casa e comida e não podemos viver ao relento."
(Roseana Murray, Poeta)
fotografia do arquivo pessoal da autora
ELIANE CAMPOS é natural de Recife/PE, onde reside. É graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco. É pós-graduada em Neuropsicologia pela Faculdade Pernambucana de Saúde. Possui mais de 38 anos de dedicação profissional em dificuldade e transtorno de aprendizagem da leitura e da escrita.
Abismos e asas: uma jornada - de disléxica a terapeuta de disléxicos (Porto Alegre/RS: Dialogar Editora, 2021) é seu primeiro livro.
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