A POESIA E A PROSA MARCANTES DE KÁTIA BORGES | Projeto 8M

fotografia do arquivo pessoal da autora 


8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)


Navegue na palavra marcante - em poesia ou prosa - da grande escritora KÁTIA BORGES:

A LUA E A NOITE

Fuga. É só no que penso.
Um ponto, pêndulo,
no qual se dependura a vida toda.

Ainda criança, lendo Poe.
As letras escorrendo, veias adentro.
Caminhos de estranheza veias adentro.

A vida toda lendo,
dependurada em um pêndulo.
A vida toda trancada fora, por dentro.

(* poema publicado no site antoniomiranda.com.br, dezembro/2009)

imagem do Pinterest 
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A DOR FANTASMA 

Tenho as mãos vazias
e horizontes perdidos.
Meu coração vai
onde a vista não alcança.

Meu coração,
treze caravelas,
não descobriu
país algum.

Meus dedos festejam
um braço invisível
e dores fantasmas,
esse vício:
agarrar-se às coisas.

Sinto o vazio espalmado
contra o vento que me cobra
ser possível,
uma pilhéria
de que os livros não dão conta.

(* poema publicado na Revista Acrobata - www.revistaacrobata.com.br, 11/03/2020)

imagem do Pinterest 
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UMA CASA COM SEU NOME 

quando estivemos em Punta del Este
era janeiro e fazia sol,
levei de lá as ruas muito limpas,
a ideia de férias,
um livro de contos fantásticos
e os nomes próprios das casas
(amei tanto essa ideia).

Dizer assim: moro em Pasárgada
Dizer assim: moro em Cecília.
Dizer assim: moro em Érica

E, na Casa Pueblo (não sei se você se recorda),
um rapaz num parapente
colorido fazia manobras no céu.

Nem disse, mas achei
que parecíamos tão sóbrias
em nossas poses de turistas,
percorrendo as paisagens
como quem coleciona imagens
para um álbum de família.

(* poema publicado no www.escamandro.wordpress.com, 15/07/2020)

imagem do Pinterest 
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O AMOR NA GARE DE ASTAPOVO 

O Cristo no quarto
talvez adivinhe que ando triste.
Por educação, não diz.
Apenas espia, expia,
braços abertos em cruz.

As ruas hoje parecem longe,
cada bairro é um país.
E o amor é este trem descarrilado
rumo a Astapovo.

Se perguntarem de mim,
diga que planejo fugas
espetaculares, minta,
invente algo selvagem
que me faça rir.

Andam nuvens pelo céu
sempre em brasa por aqui,
e os dias correm
despudoradamente.

Ainda ontem, juro, te vi descer
na estação errada e seguir
na direção contrária a mim.

(* poema publicado no livro O exercício da distração)

capa do livro O exercício da distração 
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DESDE QUE COMEÇAMOS A CONTAR OS MORTOS 

Nesses dias de distanciamento, tenho notado a ausência dos pássaros. Chego à varanda do apartamento e nenhum deles aparece para a saudação costumeira. Antes que começasse a pandemia, pousavam em bando no parapeito, como se quisessem puxar assunto. Vem de lá que te conto, parecia gritar uma dessas cambacicas impacientes. Mal aproximava o ouvido e ela mergulhava em queda livre.

Disse-que-disse de passarinhos só pode ser canto, pontificam os ornitólogos. “Essa manhã sobrevoei o Oceano”, talvez zombem de mim em uníssono. A varanda do apartamento tem sido o limite do meu contato com a natureza nesses dias de distanciamento. Poderia argumentar com eles sobre a plasticidade da aerodinâmica, caso me dessem a palavra. Mas as aves têm mais com que se ocupar.

Os sabiás-laranjeira, por exemplo, andam insones há muito tempo. Desde 2013, trocam o dia pela noite. De madrugada, nas grandes cidades, decidem cantar. Me junto a eles em silêncio, após o pesadelo diário no telejornal. Desde que começamos a contar os mortos, nunca mais o sono por inteiro. Nunca mais os pássaros fofoqueiros no ritual da manhã. Logo agora, justo agora, esse vazio na selva de prédios.

Deve haver uma razão para o sumiço das aves, penso. Ando obcecada em dar sentido às coisas. Invento uma lógica improvável para os acontecimentos. E é possível que seja eu a descobrir a cura, de tanto que a espero. Avisto ao longe um sanhaço-cinzento com ares de não vou lá. Olho para ele, aceno. Sinto que tem receio. Quem sou eu para duvidar do medo? Eu que não consigo entender um sentimento. 

Ponho a leveza da espera no cuidado com as plantas. De seus vasos, contemplam os movimentos da casa. Nunca estiveram tão solidárias. Perdi a conta de quantas vezes me viram chorar. Trago água fresca, promovemos uma pequena festa e, às vezes, rimos juntas. É mesmo o fim do mundo, essa conversa, e como irrita a mania de enxergar lirismo em tudo. Pedra é pedra é pedra é pedra é pedra.

Impossível imaginar se há agora algum futuro maquinando a aurora. Algum verso respirando sob escombros. Mais uma madrugada de olhos abertos, ouvidos atentos, insônia de pássaro. Alguém pigarreia alto no outro apartamento. Lembro meu pai chegando em casa, noite alta, do trabalho. E a sua chegada anunciada pelo som do pigarro. E, então, de súbito, escuto um barulho na varanda: ruflar de asas.

(* crônica publicada na coletânea Soteropolitanos)

capa do livro Soteropolitanos 
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SOBRE ANDAR EM SILÊNCIO 

"Tu queres sono: despe-te dos ruídos".
(Ana C.)

A ideia é andar. Vencer em silêncio poucos metros, até que se tornem quilômetros. Promover uma revolução interior pelo movimento contra a estagnação barulhenta do planeta. Mas tudo se resume na realidade a levantar bem cedo, calçar os tênis e encarar o trânsito. Há carro, moto, gente e cachorro. Raramente se vê um gato acordado e dando pinta no passeio. Se venço o sono, já estou no lucro.

Quando a necessidade de estar em silêncio grita mais alto do que qualquer palavra e nos entrincheiramos na resistência, andar é como jogar seu corpo no mundo. Desaparecer de si: uma tentação, diz o título de um dos livros de David Le Breton, o sociólogo francês que prega no deserto e, na contramão do caminhando e cantando, afirma que o grande barato contemporâneo é caminhar pensando.

Tenho pensado no silêncio como resistência desde que li uma entrevista viralizada de Le Breton e uma análise dos contos de Raymond Carver chamada Calando para resistir. Um retiro de meditação Vipassana – nove dias sem falar uma única palavra. “O paraíso”, descrevo para a amiga incrédula, com quem animadamente converso. Não, não é silenciosamente que penso.

Mas, sobre o silêncio, coincidem alguns pensamentos. O que vem na música de Arnaldo Antunes faz eco com o da medicina ayurvédica. Para os dois, é o barulho que nos interrompe, não o contrário. O silêncio veio antes de tudo, ele está no cerne do que somos. Mas a humanidade é tão louca, que inventou até uma máquina geradora de ruídos e aplicativos que ensinam como entrar em estado meditativo.

Desse modo, podemos ter a ilusão de comprar o silêncio, aquele que conectamos a alguns ruídos. Forjamos o barulhinho bom da chuva caindo no nosso bolso, produzimos o som do não-som para embalar uma noite de sono. Atualizando as definições, no Aurélio e no Caldas Aulete, não há exatamente um ponto pacífico sobre o que seja: apenas oito ou nove sinônimos que deslizam entre taciturnidade e calma.

O certo é que não há silêncio físico absoluto. Ao menos, não enquanto o corpo humano está vivo. Os sons dos movimentos da nossa respiração, sozinhos, alcançam em média 10 decibéis. Assim, ainda que involuntariamente, fisicamente, somos uma usina de pequenos barulhos e os escutamos todo o tempo. O organismo é uma orquestra de bordo. Nem sempre afinada, segue tocando, até que nada reste do Titanic.

Para pesquisas tecnológicas na área de microfones e fones de ouvido, gigantes como a Microsoft criaram câmaras anecoicas, laboratórios com níveis tão baixos de ruído, que se pode escutar até o esfregar do couro cabeludo no alto do osso zigomático. Estar em silêncio quase absoluto é tão enlouquecedor, que o recorde lá dentro não passa de 45 minutos. De certo modo, barulho produz orientação e zonas de conforto.

Não é exatamente uma surpresa que a delicadeza de algumas coisas possa ser tão cruel para o corpo humano. A tortura chinesa, por exemplo, consiste em fazer alguém ficar imobilizado sob uma gota intermitente de água que lhe cai na testa por semanas inteiras exatamente no mesmo ponto. Penso que o silêncio seja como descreve o poema de Wislawa Szymborska: a simples pronúncia da palavra é capaz de destruí-lo.

(* crônica publicada no livro A teoria da felicidade)

capa do livro A teoria da felicidade 
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.


fotografia do arquivo pessoal da autora 

KÁTIA BORGES é natural de Salvador/BA, onde reside. É Jornalista, mestre em Teoria e Crítica da Literatura e da Cultura, pela Universidade Federal da Bahia; e doutora em Literatura e Cultura, pela UFBA. É poeta e prosadora. Atualmente é cronista do jornal Correio e professora no curso de Jornalismo na Universidade Salvador - Unifacs. Seus poemas já foram traduzidos para o francês, espanhol, inglês e alemão.

Livros publicados: De volta à caixa de abelhas (contos, Salvador/BA: Selo Editorial Letras da Bahia, 2002; e Guaratinguetá/SP: Penalux, 2019, 2a. ed); Uma balada para Janis (poesia, Coleção Cartas Bahianas, Salvador/BA: Edições P55, 2009); Ticket Zen (poesia, São Paulo/SP: Escrituras, 2010); Escorpião amarelo (contos e crônicas, Coleção Cartas Bahianas, Salvador/BA: Edições P55, 2009); São Selvagem (poesia, Coleção Cartas Bahianas, Salvador/BA: Edições P55, 2014); O exercício da distração (poesia, Guaratinguetá/SP: Penalux, 2017); e A teoria da felicidade (crônicas, São Paulo/SP: Patuá, 2020).

Participação em antologias e coletâneas: Sete cantares de amigos (org. Miguel Antonio Carneiro, Salvador/BA: Edições Arpoador, 2003); Concerto lírico a quinze vozes (org. José Inácio Vieira de Melo, Salvador/BA: Aboio Livre, 2004); Roteiro da poesia brasileira, anos 2000 (org. Marco Lucchesi, São Paulo/SP: Global, 2009); Traversée d’océans – voix poétiques de Bretagne et de Bahia'/Travessia de oceanos - vozes poéticas da Bretanha e da Bahia (bilíngue, org. Dominique Stoenesco, Éditions Lanore, 2012); Autores baianos - um panorama (edição trilíngue lançada durante a Feira do Livro de Frankfurt, Secult, Salvador/BA: Edições P55, 2013); Mini-Anthlogy of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Rewiew, 2013); Soteropolitanos (coletânea de autores da Bahia, poesia e prosa, org. Matheus Peleterio, Salvador/BA: Livro do Autor, 2020); Mulheres Poetas na Literatura Brasileira (poesia, org. Rubens Jardim, Cajazeiras/PB: Arribaçã, 2021); Todos os Saramagos (org. Leida Reis e Myrian Naves, Belo Horizonte/MG: Páginas, 2022); Abrindo a boca, mostrando línguas, uma coletânea (org. Milena Britto, Salvador/BA: Paralelo13S, 2021); entre outras.



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