A POESIA DILACERANTE DE CINTHIA KRIEMLER | PROJETO 8M
8M (*)
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão,
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)
Leiamos a poesia dilacerante de CINTHIA KRIEMLER:
UM DIA SEREMOS TUDO ISSO
um dia faremos silêncio
seremos pausa como as coisas gêmeas colocadas
sobre as mesas de centro, sobre as estantes altas em salas
nobres e intocadas.
pares perfeitos, banhados pelo sol que escapa
pela fresta da persiana discreta
seremos para sempre mudos
inertes
parelhos e empoeirados como as matrioskas
os elefantes os macacos os candelabros de prata
teremos esquecido como é amar — esse praticar de infinitos
em pequenos gestos
e não saberemos dizer qual foi o instante
em que cessaram riso, abraço, murmúrio ou o toque das nossas
mãos entre as cobertas felpudas, ou os códigos trocados
por nossos olhos treinados em acender vontades
teremos rasgado cartas
e escondido fotos amarelecidas no fundo
das gavetas de uma cômoda velha
e derramado na pia os nossos vidros de perfume prediletos e empurrado
goela abaixo a cumplicidade de uma vodca gelada
seremos choro e choro
: o que escorre sem controle, o que molha só a alma.
um dia seremos tudo isso
(* poema publicado na Revista Gueto, 18/06/2018)
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NEBULOSA
nuvens demais
num céu de sábado
a boca seca buscando
o copo
o corpo suado buscando
a água
o céu orgulhoso
segurando o choro
(* poema do livro Exercício de leitura de mulheres loucas)
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OUTONAL
faz outono
mesmo que seja de primavera
a aquarela esparramada nos
cantos da cidade retangular
aqui em casa as folhas amarelas
se acumulam nos desvãos
nas linhas que entremeiam os tacos
arranhados do soalho marrom
têm conserto — avisam as vozes
mas gosto que as coisas da casa
se pareçam comigo
a madeira dos armários
em tom de folhas velhas
a cadeira vermelha
que ainda assim também é cor de outono
as janelas
semicerradas : semiabertas
— tantos anos aprendendo o que fazer com elas
ventando para dentro a primavera
dos outros
as flores dos outros
o cheiro-cor dos outros
faz outono
e o segredo não está mais
em insistir no abraço das árvores
mas em ser folha bailarina
que compreende o vento
das despedidas
(* poema do livro Exercício de leitura de mulheres loucas)
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FÉRETRO
somos tantas as que vivemos
carpimos
rezamos
trepamos
amamos
partimos
somos tantas
que me confundo
sobre qual de nós
morreu desta vez
(* poema do livro Exercício de leitura de mulheres loucas)
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LAMA SOBRE TELA
macerado pela boca do tempo
o graveto seco das décadas
não sustenta mais ninhos.
os olhos expressionistas de Van Gogh
devoram a indigência
mais que as batatas.
(* poema publicado em Germina - Revista de Literatura e Arte, março/2020)
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CAPO DI TUTTI CAPI
Quando eu era pequena
aprendi que os monstros eram feios opacos
amarronzados esverdeados arroxeados
Tinham olhos imensos e distorcidos, bocas enormes garras encurvadas
Quando eu era pequena aprendi que os monstros pegavam as criancinhas para fazer mingau
(assim como o lobo mau, mas isso daria uma
rima infame)
Quando eu era pequena aprendi que os monstros vinham à noite ou apareciam no escuro para pegar as meninas e os meninos que não queriam dormir que não queriam comer que não queriam estudar que não queriam tomar banho, ou que batiam nos coleguinhas
Quando eu era pequena esses monstros dormiam comigo muitas noites
E não me deixavam dormir em tantas outras
Depois, eu cresci
Descobri que os monstros tinham se mudado para dentro de mim
Tive que matar ou dominar quase todos deles
(alguns ainda se escondem nas dobras da mente)
Mas nada, absolutamente nada me preparou para o Monstro que eclodiria no Ano da Desgraça de 2018
Esse me roubou até Deus.
(* poema extraído de sua TL, 10/03/2021)
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ORAÇÃO AO ARCANJO SÃO MIGUEL OTÁVIO
São Miguel Otávio Santana da Silva,
Arcanjo da Veneza brasileira
Protege-nos com o escudo das tuas asas
pretas contra as ciladas dos demônios
Que lançam em voos de queda livre meninos
como tu.
Miguel, Príncipe da milícia dos céus
precipita no inferno as milícias terrenas
que andam por este mundo matando de tiro
e de queda crianças pretas e pobres
Guarda-nos dos homens do castelo que dominam
o mundo do alto das suas torres milionárias
[de onde, eles, nunca caem.]
(* poema publicado no site Mirada - miradajanela.com, 14/06/2020)
fotografia: Rio da Paz, no Facebook
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
CINTHIA KRIEMLER é natural do Rio de Janeiro e reside em Brasília, graduada em Comunicação Social e especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social (Universidade de Brasília, UnB). É romancista, contista, cronista e poeta.
Organizou a antologia Novena para pecar em paz (contos, Penalux/2017); e participa de diversas antologias, entre elas: Contos Mínimos S/A (minicontos, Penalux/2013);
TOC140 – Fliporto (Carpe Diem/2013); Vinagre: uma antologia de poetas neobarrocos (2ª ed. ampliada); II Concurso de Poesia Autores S/A (Multifoco/2013); Bar do Escritor (Tomo IV/2013); Prêmio SESC DF Monteiro Lobato de Contos Infantis (2013); Deep Blue (SindEscritores-DF/2014); Coleção Poesia, Crônica, Contos (org. Anabe Lopes da Silva, FAC-DF/2014); Quintas Barnasianas (Bar do Escritor/2014); Respeitável público — Histórias de circo e outras tragédias (Penalux/2015); Horas partidas (Penalux/2016).
Livros publicados: Para enfim me deitar na minha alma (contos, projeto pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal, 2010); Do todo que me cerca (crônicas, Patuá/2012); Sob os escombros (contos, Patuá/2014); Atos e omissões (novela policial, e-book, Amazon/2014); Contações (contos, e-book, Amazon/2015); Mesa posta (conto, e-book, Amazon/2015); Na escuridão não existe cor-de-rosa (conto, Patuá/2015, semifinalista do Prêmio Oceanos 2016); Boneca (conto, Patuá/2016); Uma moça feliz (conto, e-book, Amazon/2016); Todos os abismos convidam para um mergulho (romance, Patuá/2017, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018); Exercício de leitura de mulheres loucas (poesia, 2018); Tudo que morde pede socorro (romance, Patuá/2019); Viúvas de sal (romance, Patuá/2022).
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