A POESIA REALISTA DE SONIA REGINA BISCHAIN | PROJETO 8M

fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão, 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal) 

Emocione-se com a poética intensamente realista de SONIA REGINA BISCHAIN:


MÃES EM LUTA

O rosto, 
noite de tempestade e dor.
A voz, 
fortaleza, a clamar por justiça.
O olhar, amor
a desfilar sombras.
Os pés,
incansáveis a procurar
imagens roubadas pelo tempo.
As lembranças,
a saudade,
e o desejo 
a recompor cenas,
repletas de lapsos,
não lhe trariam de volta
o filho amado,
mas, quiçá,
acalmariam a dor.
Enfiou sentimentos
e lembranças 
no fundo do peito
e saiu para a luta,
mesmo sabendo
que o medo mora na esquina.

(* poema extraído de sua TL Facebook, de 02/02/2014)

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TECENDO A VIDA

O sol empurra,
lentamente,
pra um canto do céu,
a lua.
Hora de nascer o dia.
Sai Maria,
meio-sol-meia-lua
arrastando Pedrinho,
filho bastardo
de um outro Pedro.
Pedrinho aos berros:
"quero minha mãe!"
Pedrinho na creche.
Maria,
avançada em anos,
filha, mãe, avó 
réplica de tantas Marias,
cuidados, suor e pão. 
Maria volteando,
fogão,
pia,
louça,
vassoura.
Roupa, 
tanque,
sabão,
sol,
pregador,
varal.

E vai o sol,
e vem Pedrinho 
e volta Maria, filha.
Retorna a lua,
volteando o ciclo:
água, 
sabonete,
travesseiro,
lençol.
Maria vó,
nua e só.
Ciclo infinito!
Dor e pranto
feito lição no peito.
Desmedida luta.
Cintilando ternura
onde é tão pouca coisa
ser Maria.
Maria desvelo,
porção-sol-e-lua,
volteando,
arremata dores,
tece sorrisos,
borda esperanças,
costura sonhos.

(* poema publicado na Antologia de Poesias Mulherio das Letras, pp. 12-13)

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TRAVESSIA

Ficar não mais é possível, procuro um lugar para sonhar.
Sonho mundos sem cercas, sem bandeiras.
Partida, travessia: sol escaldante, chuva, vento de inverno.
No corpo, farrapos. Nos pés, lesões da longa caminhada.
Caminho sem olhar para trás.
Tento esquecer a hora trágica dos que sucumbiram,
dos que não chegarão a lugar algum.
Tudo ficou no passado, a vida me cabe nas mãos.
Levo apenas memórias, ou o que delas restou: feridas na alma.
Travessia, estado de espera.
Quisera eu ser água, vento, luzes, transpondo fronteiras.
Sou um frágil vaso, vazio. Sou incerta morada.
Minh’alma se desprende de mim, grita e chora,
segue o vento, e nada de novo.
Espero, contemplo, e nada. De novo!
Quem ousei chamar de irmão, guarda silêncios!
Então, deixarei de ser vento, serei somente espera.
A cada alvorada, sinto esgueirar-se
a magia da esperança, me furtando as forças.
Prostrado espero, me perco.
Não sei mais o que sou, sou sombra, sou gente? Existo?
O mundo não me abraça.
Sou onze milhões de refugiados.
Sou sessenta e cinco milhões de deslocados.
Sou palestino expatriado em meu chão.
Sou haitiano, venezuelano, mexicano.
Sou angolano, congolês, sírio, somali.
Sou mulher, sou homem, sou idoso, sou jovem, sou criança.
Sou resistência, rompendo cercas, muros,
cruzando desertos, mares.
Estou no Oriente Médio, no Leste Europeu,
Estou na Palestina, na Jordânia, na Turquia, no Paquistão,
no Líbano, na África, na Ásia, nas Américas, 
vivendo tantas mortes.
Travessia… Serei apanhado, preso, abatido?
Serei humilhado, devolvido, faminto e aos farrapos,
a uma terra devastada?
A escuridão da noite, traiçoeira,
me sepultará nas profundezas do oceano?
Os filhos que me restam, sucumbirão comigo?
Serão enviados ao desconhecido?
Falarão outros idiomas, conhecerão outros costumes?
Travessia… Ficar não mais é possível.
A luta é maior que o medo. A dor, maior que a luta.
O mar, maior que a dor. A fome, maior que o mar.
Ah, imensidão de mar!
Que suas águas não me entreguem
em praia estrangeira, desfalecido, sem vida.
Travessia… Serei acolhido? Terei um novo lar?
Sobreviverei pela ajuda humanitária?
Viverei à espera, em campo de refugiados? Retornarei? 
Contemplarei, um dia, minha terra restaurada?
Bato às portas do mundo civilizado: o mundo dos que têm.
Sou o outro lado: o mundo dos que carecem.
Sou estranho pesadelo.
Levantei dos escombros, das cidades destruídas pelas bombas, pelos mísseis e pelas armas químicas. Sou herança de muitas guerras. 

(* poema publicado na revista Amazonas, 18/06/2018; e na 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras, pp. 39-40)

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ÀS MARGENS DA VIDA

Naquelas noites de infância,
o mundo girava feliz,
refletindo estrelas em gotas de orvalho. 
Seu pequeno coração ardia esperanças. 
Seu olhar de segredos e distâncias,
inocente, sonhava belo destino,
quimeras, calmaria, paz,
futuro sem grilhões. 
Despertou assustado,
às margens do dia.
Nestas paragens,
uma estranha ordem das coisas:
botas negras, leis,
fardas impiedosas.
Destino que se cumpre
sem pedir licença,
atirando-o contra o nada,
feito mar em ressaca,
onda morrendo na praia. 
Angústia, rumores de medo,
lágrimas e morte. Denúncias vãs. 
Enquanto piedosas mãos 
acendem velas, vozes,
entre sombras, alçam fronteiras,
ardem desejos.
Outras vozes reivindicam
sonhos não nascidos, lutam,
alimentam sonhos livres.

(* poema publicado na I Coletânea Contos & Poesias Mulherio pela Paz, p. 83)

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AMNÉSIA

Ah, se eu tivesse memória!
Contaria, quem sabe, a tua história.
Se eu tivesse memória,
talvez também a minha.
Meu silêncio e o teu
frutos de nossa ignorância.
Ignorância, castigo maior,
esperança morta,
subtraído destino.
Como segredo
me é negada a história.
Ah, se eu tivesse memória,
nada no pensamento seria calmo.
Justiça no mundo é lenta,
lembro e esqueço
que por mim passou um dia.
Traição desmedida,
desgraça premeditada,
inflamada cobiça.
Como foi ainda está
a reinventar o inferno na Terra.
Obstáculos, abismos,
sucessivas humilhações,
multidões de famintos,
legiões de esfarrapados.
Passado encerrado
no tempo silencioso.
Ah, se eu tivesse memória!
Como condenados
multiplicam-se os miseráveis,
heróis derrotados,
destino ausente,
desigualdade.
Procuro a direção do sol.
Quem me salvará?
Quem pra me tirar dos sonhos?
Neste chão maldito e bendito,
ah, se eu tivesse memória!
Eu contaria a tua história,
quem sabe também a minha?
Mas memória me foi negada
tudo que me vendem
são histórias inventadas.

(* poema publicado na Revista Ruído Manifesto, 06/06/2019)

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QUE NÃO SEJA TARDE!

Haveremos de emudecer
o pranto, a dor, a angústia.
Haveremos de sair da penumbra,
das ruínas, das prisões.
Haveremos de arrancar as grades
escancarar janelas, portas
e saudar os raios de sol.
Haveremos de cruzar
as fronteiras da esperança
e enxergar a realidade sem culpas,
sem sombras, sem mentiras.
Haveremos de evocar,
decorar, gritar
os nomes dos injustiçados
guardados em nossa memória.
Haveremos de enfrentar
o medo, a angústia,
de quebrar as algemas,
de transpor as portas das tormentas,
de reviver todas as faces da rebeldia.
Haveremos de reaprender
a lutar, a voar
e transbordar de sonhos nossos dias.

(* poema publicado na Revista Ruído Manifesto, 06/06/2019)

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INDIVISÍVEL

Como se fôssemos parte de tudo:
o visível e o invisível;
o compreensível e o inexplicável,
como elemento único, universal.

Como se o risco de perder o futuro
atemorizasse a todos
e cada árvore derrubada,
cada rio poluído,
cada animal extinto
se tornasse angústia em nós,
como se fôssemos um.

Como se a Terra fosse um todo:
água, mato, pedra, animais e gente
e cada gente fosse uma só pessoa
e cada pessoa fosse a  Terra.

Como se as lágrimas de uma mulher
fossem choradas por todas elas.
Como se o chão duro;
o frio cortante das madrugadas
dos moradores de rua
nos dilacerasse a carne,
nos magoasse a alma.
como se fôssemos um.

Como se nos humilhasse
o tapa na cara
e machucasse em cada um
os pés calejados de andar descalços
e em todos os estômagos
doesse a dor da fome.

Como se meninas e meninos abandonados
fossem filhas e filhos de todas as mães.
Como se velhos solitários
fossem avôs e avós de todos nós.

Como se não existissem minorias,
preconceitos, racismo
e tantas outras tolices,
e fossemos de fato gente,
respeitados em nossos direitos.

Como se cada riso
movesse todos os lábios,
como se os olhares tivessem todos
o mesmo brilho afortunado,
como se os corações transbordassem de esperança
e aprendêssemos todos a estender as mãos,
assim, como se fôssemos um.

(* poema publicado na Revista Ruído Manifesto, 06/06/2019)

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ATALHOS

Rumo eu pelo caminho,
atalho perdido na mata,
galhos, folhas, flores, sementes.
Sei bem das distâncias,
do rio que atravesso.
Braçadas a nado, cansadas.
Deixaria eu mais que pegadas?
Gotas d'água?
A curva da estrada, as cores,
a sombra, o vento, as horas,
as minhas palavras?
Me ouvirias dizer de pássaros,
de nuvens, de luzes?
Ah, constelações!
De alma partida,
diria eu um pouco mais,
falaria de medos, de dores,
de homens, e de passos errantes.
Reconstruiria o caminho,
atalhos restaurando o passo.
Em outras margens 
refaria a largo as pisadas,
deixando para trás 
a amargura do andar.
Jogaria longe as vestes insanas
e revelaria os olhares,
os sentidos, os saberes.
Aí falaria eu de cantos,
de risos, de abraços,
de amor, enfim.

(* poema publicado na  Coletânea de Poesias e Contos O Livro das Marias, pp. 54-55)

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Nem sempre voo
muitas vezes chão.
Um oceano de vontades
a desvendar o vínculo
vicioso e perverso
do capitalismo
mantendo o povo
nos limites do necessário:
trabalho/consumo
trabalho/consumo
trabalho/consumo,
histórias mal vividas.
Interrompidos 
o beijo,
a intenção do abraço.
Minhas ansiedades veladas
nas madrugadas de insônia.
O corpo esgotado
exigindo cama.
Os cães latem no breu da noite
assustando meus fantasmas.
Pensei nunca desistir 
então, sigo.
Os hipócritas calam os versos:
muita igreja, muita fé
muita obediência, muita submissão,
já os poetas, encarcerados
gritam a dor.
Que seja a dor um urro,
um gesto
que paralize a barbárie.
Que seja o grito a pureza das águas 
contrapondo-se à dureza das pedras
que o grito faça aflorar a raiva
capaz de denunciar o insuportável
o não desculpável
o imperdoável 
o não pode ser.
Me sinto plena de minhas decisões.
Não me vendi por 30 dinheiros.
Eu pensei em nunca desistir
então,  sigo eu, na contramão do caos
eu, um oceano de vontades.

(* poema extraído da sua TL Facebook,  03/09/2022)

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REINVENTANDO CORES

Caminhar teus caminhos, ganhar tuas ruas,
reinventar tuas cores, encantar o agora, 
adiar o derradeiro.
Conhecer tuas manhãs, tuas tardes, tuas noites,
roubar as cores que tingem teu horizonte.
Perder o medo de tuas sombras.
Deixar o olhar brilhar com tuas luzes.
Ecoam teus sinos, tuas buzinas, teus motores, 
tuas sirenes são turbilhões de vozes,
ensurdecem, estressam comovem ou alegram
se espalhando ao vento.
Teus prédios grandiosos, tuas mansões, 
tuas casas, teus barracos,
teus escuros e obscuros becos...
Caminho por tuas ruas, pequena e invisível,
registro teus momentos...
Luxo e miséria, diversidade e diferenças.
Reinvento tuas cores, São Paulo,
mas não escondo tua injusta desigualdade.

(* poema extraído de sua TL Facebook, de 25/01/2023)

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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.

fotografia do arquivo pessoal da autora 

SONIA REGINA BISCHAIN é natural de São Paulo/SP, e mora na Vila Penteado, Distrito de Brasilândia, periferia da capital. É escritora (romancista, contista, poeta), fotógrafa e design. Fez diagramação, capa/fotografia/ilustração de seus livros e de outros publicados por coletivos e saraus da periferia de SP. Participou em várias exposições fotográficas individuais e coletivas em casas de cultura, bibliotecas e saraus de SP. Fez parte de eventos literários no Brasil, França, Cuba, Paraguai, Chile e Argentina. É uma das organizadoras do 'Sarau da Brasa', que acontece desde 2008, com um trabalho voltado para a literatura em bibliotecas e escolas públicas da região do Distrito de Brasilândia. Em julho de 2015 participou do '4º Encontro Internacional de Poesia Hablada', em Havana/Cuba. Em janeiro de 2016 seu romance 'Nem tudo é Silêncio' foi apresentado por Paulo Thomaz, da UnB, em Santiago de Compostela/Espanha, no 'IV Colóquio Internacional de Literatura Brasileira Contemporânea'. Com a mesma obra, que trata da vida na periferia de São Paulo durante a ditadura militar, a escritora também participou de um debate na Sorbonne, em Paris, em outubro de 2017, apresentando o poema 'Travessia' no Simpósio Internacional (org. dos prof. Leonardo Tonus e Ricardo Barberena). É integrante do movimento 'Mulherio das Letras'. 

Livros publicados: Rua de trás (poemas, São Paulo/SP: Coletivo Cultural Poesia na Brasa, 2009); Nem tudo é silêncio (romance, São Paulo/SP: Coletivo Cultural Poesia na Brasa, 2010); Vale dos atalhos (romance, São Paulo/SP: Editora Sundermann, 2013); Olhares da Brasa - fotografia, cultura daqui (livro de fotografias, em coautoria com Avelino Regicida e Enver Padovezzi, São Paulo/SP: SD Edições, 2015); Viandante, labirintos entressonhos (romance, São Paulo/SP: Círculo Contínuo Editorial, 2017); Olhares que devoram sonhos (contos, Jaú/SP: 11 Editora, 2019); Tempo do tempo ser (crônicas, edição da autora, 2022); e Vi, por acaso, um sorriso (contos, livro artesanal do Coletivo Dulcinéia Catadora, 2023).

Participação em antologias e coletâneas: Brasil Periférica - Literatura Marginal de São Paulo (antologia bilíngue, org. Lucía Tennina, publicada na Argentina e no México, em 2014, e no Chile, em 2016); Antologia de Poesias Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: Costelas Felinas, 2017); 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR Editora, 2018); I Coletânea Contos & Poesias Mulherio pela Paz (org. Alexandra Magalhães Zeiner e Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR Editora, 2018); Sou Mulher, Logo Existo! Amor, Liberdade, Luta e Resistência - 3a. Coletânea de Poesias e Prosas Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo/SP: ABR Editora, 2019); Antologia Comemorativa Dia Internacional da Mulher Mulherio das Letras Portugal - Prosa e Conto (org. Adriana Mayrinck, Lisboa-PT: In-finita, 2019); Coletânea de Poesias e Contos O Livro das Marias (org. Jeovânia Pinheiro do Nascimento, São Paulo/SP: Editora Ixtlan, 2019); Coletânea A Obra de Maria Valéria Rezende  - Resenhas e Variações (org. Adriana Mayrinck e Vanessa Ratton, Lisboa-PT: In-finita, Santos/SP: Amare Livros, 2021); entre outras.





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