AS CRÔNICAS REFLEXIVAS DE ANA LÚCIA PAES | PROJETO 8M
fotografia do arquivo pessoal da autora
8M (*)
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
Dias mulheres virão,
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)
Surpreenda-se com as crônicas sempre reflexivas de ANA LÚCIA PAES:
Para que ódio, para que fingir, para que viver?
Dias melhores? Vida melhor?
Quem sabe uma grande piada, vinda de alguém mais contente?!
Quem tem culpa da angústia?
Quem tem culpa da não vida?
Nós somos fracas, protegidas.
Nós somos amadas, feridas.
Nós não temos direito, calamos.
Quem nos ama, quem nos chama?
Quem sabe os homens, bêbados de sua besta vida.
Quem sabe os deuses, fartos de sua grandiosidade... e isolamento.
Nós nos vingaremos... cruéis.
Partiremos para o sem fim, fugiremos do nada. Jamais nos encontraremos cara a cara, corpo a corpo. Porque também já não mais teremos corpos.
Seremos o infinito retratado. Rirão de nós, riremos de todos. As gargalhadas se confundirão e não saberemos mais quem tem razão, o que é razão.
Seremos símbolo de paz, apesar de frutos da guerra.
Não estaremos vinculadas a interesses de dominantes ou dominados.
Não estaremos presas nem mesmo a nós mesmas. E, de tanto sermos o que queremos ser, nos desintegraremos na inexistência.
(* 30.11.1975)
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Não domino qualquer arte, nem me faz parte qualquer dom.
Não tenho traços decididos com significados ocultos ou definidos.
Vivo de apreciar cada ponto, canto ou som.
Vivo da percepção da forma dos movimentos, da dança da fumaça, das cores dos perfumes.
Capto como um morcego as relações interpessoais. Mas vivo dispersa. Dias inteiros sem gualquer afeto. Existindo apenas.
Ainda não sei bem o que é nem por que ser.
(* 27.07.1981, de quando ainda não sabia...)
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Meu sentido anda afoito pelo doce-forte, pela emoção nova e eterna.
Penso e repenso. Sugo toda criatividade alheia, como se não fosse mais capaz de criar. Como se nunca tivesse sido.
Ando em paz, capaz, às vezes trôpega pela vida.
Encontro e reencontro o sentido.
Vejo o real do avesso.
Não sei se existo ou passo. Um pouco de cada, de acordo com o tempo ou com a luz, pedra furta-cor que sou.
Camaleão errante entre serpentes.
Mudo que mudo. Engano-me. Já nem eu sei mais quando estou verdadeiramente alegre ou triste. O cume da perfeição. Artista dos próprios papéis. Mágico que ilude a si mesmo diante do espelho. Perder-se é o risco. Jamais sentir angústia. O prêmio, inatingível para nós, calouros que somos da vida. E nessa marcha lenta, coisas se fazem e desfazem. Imperceptivelmente. E, quem vier depois não vai saber que o vale já foi montanha.
(* 15.05.1983)
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Tempo útil de fazer toda e qualquer coisa.
Tempo que sobra para fazer as coisas que faltam ser feitas.
Aproveitar o tempo, esticar o tempo.
Tudo por quê? Pra quê?
Pra dar tempo de viver tudo.
Tempo que nunca dá.
Tudo nunca vai ser vivido portanto não existe.
O raciocínio lógico é simples.
Termina sempre com um ponto final.
Encaixe perfeito.
Mas viver é ilógico.
(* 25.05.1983)
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A cada meditação um novo espanto, quase escândalo! Um êxtase celular, molecular, atômico. Um orgasmo cósmico!
O deparar-se com a felicidade que reside em nós, que está ali, serena, eterna, ao alcance de uma mente quieta... do Nada que é Tudo!
O encontro com o amor que não é de... ou para... o AMOR que apenas É!
(* 14.05.2017)
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Quando, diante do espelho, sem maquiagem para disfarçar as marcas da vida, e sem roupa para esconder os efeitos do tempo, é que estou diante daquilo que acredito ser eu.
Mas, quando abstraio do espelho e fecho os olhos, aí sim fico diante de tudo o que fui e fiz, e que me fez chegar àquele momento diante do espelho.
E, assim abstraída de espelho e de crenças, vislumbro tudo o que ainda hei de ser e fazer.
(* 18.10.2021)
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Caminhando pela areia, súbito, fui tragada por um lugar, um pensamento, um desejo?
Uma falta de desejos...
Parada ali, estancado o passo, tudo me causava estranheza. Nem as memórias de onde vim, nem os projetos para onde ir.
De um lado, o mar imenso, insondável. De outro, a areia e os arbustos, e até uma floresta não menos insondável que o mar. E eu ali parada, estática, estarrecida.
Abduzida por um instante, ganhei de presente o presente!
(* 27.10.2021)
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O tempo pinga minuto a minuto como um conta-gotas, outras vezes escorre como torneira aberta. Quando criança, era medido na distância entre Natais (quase eterna!). Hoje, parece que as distâncias encurtaram... e o outro domingo foi ontem.
Dizem até que os dias já não têm mais 24 horas e que a pressa dos homens encurta o tempo. Fato é que agora é medido em marcas pelo corpo - a cor dos cabelos, a flacidez da pele, as incapacidades surgidas aqui e ali. E, ao se passar já da metade do tempo que nos cabe aqui, apresenta-se como imprescindível a questão da finitude (o fim do tempo?), escapa-se para uma outra dimensão em que se abstrai do tempo ou se tenta eternizá-lo em palavras que se engavetam, atropelam-se num papel quase em branco. Na verdade, somos nós esse papel em que a Vida foi escrevendo dia após dia, registrando alegrias e pesares, acrescentando vírgulas e pontos e exclamações e interrogações.
Somos escritos pela Vida, escrevemos sobre a Vida e, ao final, tudo é sempre uma coisa só... a ânsia humana de se eternizar no tempo, que escoa indiferente, infinitamente...
(* 31.10.2021, inspirada pelas bruxas, que ignoram o tempo)
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A flor que vês não é a mesma que vejo. O mundo que vejo não é o mesmo que vês.
O que muda? A flor, o mundo? O olhar... se tudo o que vejo, vejo com o que sou, então é único. Talvez por isso, para Cristo há os "olhos de ver" e, para Buda, "tantos caminhos quanto seres sobre a Terra".
E, se o experimentador é parte da experiência, quantos resultados possíveis teremos?
Não é difícil ser próprio. É impossível não sê-lo.
(* 02.11.2021)
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Represei por muito tempo esse sentimento todo.
Engoli muitas vezes o choro que queria transbordar. Agora, ele escorre livre e não consigo alcançar a causa da fissura no dique, que vai esvaziando a represa.
Como se trata de uma fissura e não de um rompimento drástico, vai escoando devagar. Como se quisesse dar tempo para que o defeito seja corrigido. Mas a fissura pode não ser defeito, e o pranto livre pode ser a cura para um defeito, sim, muito maior.
A surpresa é que a represa não se pode esvaziar. Porque é alimentada de todos os sentimentos nossos de cada dia. E, nessa nova configuração, não prende, não segura, não represa mais.
Aprendeu o movimento.
(* 10.11.2021)
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Na casa nova havia uma banheira, que permanecia ali despretensiosa, meio adorno, meio estorvo. Mas, já que havia na casa uma banheira, por que não experimentá-la? Começa todo um ritual - paciência para que a água atinja o nível certo, a temperatura certa. Entrar devagar, sentindo a água inundar o corpo. Submergir lentamente, só a cabeça fora d'água, pensando, observando... Aos poucos, as sensações inundam, desbotam o pensamento.
O barulhinho da água ao menor movimento, o relaxamento, o conforto. Memórias de um tempo distante... A primeira casa? O ventre (o útero, a bolsa d'água)!
Agora, fazem todo o sentido banheiras, piscinas, lagos, mares...
(* 14.11.2021)
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Andava eu a matutar, quando começaram os primeiros sintomas. Sentia-me empanzinada, empanturrada, pesada, como se gestasse algo não no útero, mas em todo o meu ser.
Chegado o tempo, comecei a parir.
De minha boca entreaberta e muda começaram a sair letras, que dali pulavam como pipocas que saltam da panela. E saíam em profusão, e se juntavam umas às outras, e formavam palavras, que se atraíam e se enfileiravam segundo alguma ordem que escapava a qualquer entendimento.
Fiquei assim, contemplando esse bailado fascinante, esse processo de dar à luz letras, incontáveis letras, matéria-prima da revelação de tantas ideias por quanto tempo contidas. E fui ficando leve, leve, leve... até estar quase um não-eu. Até sobrar apenas Isso!
E, nesse estado de eu/não-eu, já não havia mais letras a sair de minha boca entreaberta e muda. Era impossível formar uma palavra que pudesse definir, nomear Isso.
Era a plenitude de apenas Ser.
(* 03.01.2022)
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Mal nascemos e começam as tentativas de nos definir.
Como humanos frágeis e dependentes, vamos aceitando tais definições.
Primeiro o nome, depois o número de "identidade" e o número que nos situa como "pessoa física".
E vamos confundindo vida afora o que somos com o que dizem que somos. Até se insinuar uma leve desconfiança de que nada disso é real.
O que somos não tem nome, tamanho ou forma que o defina. Mas, a consciência de tal liberdade é demais para o ego, que necessita saber quem é e onde está e o que tem, e se aprisiona definitivamente no espaço-tempo. Viver está além do ego.
(* 20.02.2022)
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Vou descendo devagarinho aos infernos que me habitam. Transitando a contra-gosto os corredores que levam ao cômodo escuro e empoeirado, onde moram os monstros, todos que também me compõem e que ali se demoram.
Hesito, tento ignorar, mas eles bafejam, rugem, rangem dentes.
Ignorar a sombra em um mundo dual seria negar a luz. Sigo então, resignada mais uma vez. E tento iluminar ainda que uma pequena parte desse quarto escuro, com a certeza de que, a cada vez que de lá retorno, estou mais próxima de me tornar inteira.
(* 21.02.2022)
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Andei esquecida da poesia que habita em cada dia. E, no dia dito da mulher, eis que ela me encontra, na borboleta branca que, livre, visita a também branca flor do manjericão, ou no bailado das folhas das árvores ao vento.
Os pequenos milagres continuam acontecendo. Só minha percepção deles é que andou anestesiada, por estar mais vívida ante meus olhos a imensa estupidez humana.
Mas, chega! O foco não deve estar nos que fingem ser o que não são, e se perdem de si, e acabam se tornando qualquer coisa... muitas vezes repugnante! O foco deve estar naqueles que são coerentes, generosos, gentis. Nos que São...
(* 08.03.2022)
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O papel recebe o transbordo da alma. Cobre-se de palavras que foram captadas, apreendidas, adivinhadas... acolhe-as todas, mesmo sem saber o que significam, se significam ou se vão dar significado a quem lhe pousar os olhos.
A alma transborda de muitas formas, em cor, em som, em palavra. Parece mesmo que seu propósito é transbordar, romper limites, atravessar mundos, interpenetrá-los, ampliando, expandindo a Vida, manifestando a Vida.
(* 08.05.2022)
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Sou o elo entre passado e futuro. Sem o que fui, não seria o que sou. Sem o que sou, nada serei. E vou, qual exímia tecelã, movendo a lançadeira, cruzando os fios, compondo o tecido da vida, ora com brilho de estrelas, ora com o de lágrimas. Vestindo-me com elegância e orgulho de tamanha arte, e me despindo com determinação e coragem de desnudar a forma sem forma do Ser que orquestra todo esse movimento.
Assim, de tanto fazer-desfazer-refazer, compreendo que tudo é experiência, e posso, enfim, caminhar em paz pela vida.
(* 23.06.2022)
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Bebemos na mesma Fonte, mas jamais saberás ou saberão dos sabores que lá experimentamos. E os respingos da mesma Fonte têm cores e nuances que são diferentes aos meus olhos e aos seus, embora traduzam uma única e mesma história.
E retornamos da Fonte úmidos, saciados e até embriagados, às vezes... Com um sorriso indecifrável no rosto, para perplexidade de quem nos vê, nos lê, nos sente, mas ainda não se aventurou a ir à Fonte e trazer de lá experiências indefiníveis, indecifráveis, inalcançáveis por quem nunca lá esteve.
Daqueles que foram à Fonte podemos apenas perceber que por lá estiveram, mas o deleite e o êxtase que lá alcançaram só a si mesmos pertencem.
(* 17.07.2022)
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Há uma vida que palpita em mim. Vida que é ávida de experimentar a si mesma. Que ignora a idade do corpo que a ancora, e extravasa, exala por cada poro e dá vida a cada pétala ou pedaço de nuvem... a tudo o que o olhar alcança. Vida que não pode ser contida por corpo, espaço, tempo, porque é atemporal, infinita, incorpórea.
Então, não me reconheço como um corpo que ocupa um espaço num tempo, mas apenas como o pulsar contínuo, eterno e sempre novo a cada dia, hora, segundo. Viver plenamente é entrar nesse ritmo, dançar essa dança.
(28.10.2022)
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Quantas dimensões haverá dentro de mim? Incomensuráveis, incontáveis, infinitas... E eis que ali, entre um pensamento e outro, acabo sempre encontrando mais uma, e outra, e outra. Se a modernidade é líquida, o viver pode ser gasoso. Ainda mais expansível e sem forma. E, quem consegue viver assim, sem nada que o contenha, que lhe crie forma e que o revele?
Experimentar dentro tamanha liberdade é por vezes assustador. Um imenso mar de possibilidades, que dá medo de se perder. Mas, quem ou o que estaria se perdendo, se é ali que tudo É?
(* 30.11.2022)
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
ANA LÚCIA PAES, por ela mesma:
"Nasci em São Paulo, no Ipiranga, em 10 de junho de 1958, já bradando por liberdade. Passei parte da infância no litoral, outra parte no interior de São Paulo. Ingressei aos 17 anos na faculdade de medicina ( UFRJ), por vocação descoberta aos cinco anos de idade. Especializei-me em homeopatia e ainda exerço.
Leio tudo o que se me apresenta, desde que aprendi a ler. Escrevo tudo ou quase tudo desde os 13 anos, por pura necessidade de compreender o mundo ao meu redor e a mim mesma.
Tive o privilégio de ser mãe e compartilhar a vida e o aprendizado com três seres maravilhosos."
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