Para não dizer que não falei dos cravos 05 | Dez Poemas de TITO LEITE

 

Para não dizer que não falei dos cravos (05)


Dez poemas de 
TITO LEITE, em:

"AURORA DE CEDRO"



CONFLITOS

Eu habitava comigo
vomo se a sonoridade do meu nome
fosse um origami
na aurora de cedro.

Eu me perdera de mim
como se a queda
fosse de mármore 
e no bem que ganhara
perdesse a direção. 

A curva,
o baque,
o presságio 
de uma ilusão. 

Era de granizo
a procela que feriu 
e depois partiu.

Era poético 
o corpo que suportou
e depois metaforizou.

Era um sabre
no bolso a vontade
de qualquer estrada
que desapontasse
as evidências,

como se na letargia
dos céticos, pudesse
acordar sem acreditar
na fealdade
dos porões bestiais.

(pp. 21-22)

-*-


CIRCULAR

O poeta
do caos urbano
salta no circular
atravessando
as ruas que mordem
o seu drama.

No absurdo
da vida, nem sempre
bela, a lua passa
de pés descalços.

Eu, que não 
tenho moeda, ofereço
meu chapéu,
como quem acena:
evoé, poeta!

(p. 27)

-*-


FUGACIDADE

Não perco 
o poder de fogo
com as estrelas
que me
são indiferentes. 

Mesmo
que o vento
me cortasse
os lábios,
eu beijaria o caos.

Deus me sabe
na moira
das suas mãos. 
São voláteis 
as minhas preces.

(p. 36)

-*-


O QUE NOS FALTA

Sonora é a solidão, sonoro
o silêncio, sonora
a carne do gueto
e sonora é a boca
em busca de palavras 
que se abram em pálpebras. 

No efêmero,
onde o eterno
copula com o vazio
e androides deificam a sensação 
em bens de consumo,

cabe ao poeta, condenado
à embriaguez do verbo,
fazer alusões à casa 
que nos falta.

(p. 37)

-*-


CURVA

Não há estrada certa 
ou verdades incontestes.

Até no céu o joio cresce,
só no insólito Deus por perto.

Caminhos, noites abertas
num albergue em deserto.

(p. 43)

-*-

capa do livro Aurora de cedro


SEM GARANTIA

Nos ventos alísios
tudo tão coerente 
e a flor amanhece
em sol poente.

Não há deserto 
de retirada,
o cupido não 
tem asas,

as magnólias
são ignoradas,
a solidão pede errata
e a vida exige
código de barra.

(p. 47)

-*-


O CUIDADO EM SI

no ermo revolto
de cada homem, a transcendência 
do fogo.

Pegar
a alma pelas mãos 
e retirar
o mal das entranhas:

qual uma camisa de força
que sobrevive
à escura nau dos loucos
e banha a cidade.

(p. 52)

-*-


DO OUTRO LADO

Sabendo que tudo
é grácil, o poeta
talha o seu topázio.

Fazendo das dúvidas 
que ardem
uma begônia.

Sangue das palavras
bem ditas.

Bendito quem chupa
o fruto e o caroço 
do poema maldito.

(p. 64)

-*-


ANÔMALO 

Não me peça 
bom senso,

sou do incenso.

Nunca comedido
ou respeitoso
com o peso
das escolhas.

Não ter medo
de colocar o mundo
em questão 
é trilha sonora
de toda estrela bailarina.

Não quero chão. 
Quero nuvens,
lua ou a queda.

(p. 76)

-*-


LUA EM SOL

Lá fora
o sol arde,
aqui dentro, nubiloso:
falta energia.

O dia, um cão 
que morde uma nuvem,
um cheiro de chuva
petrificada na sala.

Queria ser
um eremita
que busca
só o necessário 
e quando o encontra,
nada se antepõe
a esse amor.

Quando chegamos
perto de Deus
nos sabemos
um nada.

Medito isso
sol e lua,
meditar é militar
profundamente 
um pensamento. 

Assim
me vou, acendendo 
uma vela
ao mistério que me desvela:

que seja
pluma essa morada
nuviosa.

(pp. 81-82)

-*-


fotografia do arquivo pessoal do autor 


TITO LEITE  (Cícero Leilton) é natural de Aurora/CE e vive no Mosteiro de São Bento, em Olinda/PE. Poeta e monge beneditino, é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Curador da Revista Gueto. Tem poemas publicados em revistas impressas e digitais.

Participação em antologias/coletâneas: Sob a pele da língua – breviário poético brasileiro (org. Floriano Martins, Arc Edições, 2019); Revista Gueto: edição impressa n° 1 (org. Rodrigo Novaes de Almeida, Patuá, 2019); entre outras.

Livros publicados: Digitais do caos (poesia, Edith, 2016) e Aurora de cedro (poesia, 7 Letras, 2019) e Dilúvio das almas (romance, Todavia, 2022).



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