Perdi a conta dos dias das
noites dos dias em que sentada na poltrona olhava as amendoeiras do quintal
folhas verdes no ar parado a boca seca o ventre contraído os braços sem
movimento um cérebro de chumbo seria melhor lhe dar vallium teriam dito talvez
ela dormisse não não tomaria nenhum remédio mas o médico mandou você vai se
sentir melhor melhor como? pra quê? alguém repetira precisa tomar remédio para
dormir e mãos solícitas estenderam a pílula e a água bebeu a água vozes se
levantaram ao longe uma porta bateu ou foi uma janela por onde o vento seco
entrou talvez rodando uma folhinha verde talvez trazendo um graveto de ninho os
olhos ardem uma rede range talvez sejam as crianças na varanda chegam da
cozinha sons de pratos sendo empilhados garfos colheres e facas sendo guardadas
facas estremece procurara não saber detalhes que importam os detalhes ele está
bem morto nunca mais passeariam ao sol de mãos dadas indiferentes ao esplendor
da natureza em volta deslumbrados um com o outro na amendoeira
vários pardais ensaiam
suas canções em vários tons ah
natureza indiferente aos homens nem nossa vida nem nossa morte a perturbam
segue suas estações tranquila por alguns instantes penso nessa natureza
imutável forte e poderosa e me sinto reconfortada como um pardal dentro dela
essa mãe maior que as outras essa mãe sem preconceitos sem juízos sem críticas
essa mãe totalmente amparo uma coisa rompeu aqui dentro talvez esse bolo na
garganta se desfez e as lágrimas vão descendo devagarinho sem ruído molhando o
rosto e os braços se cruzam em meu peito enquanto eu me vergo para frente e para trás como se estivesse
embalando criança mamãe fala graças a Deus ela está chorando! Juliana minha
filha graças a Deus você está chorando! me abraça com ternura e eu sinto a casa
me abraçando a vida me abraçando quente e me libertando para ser de mais
ninguém só de mim mesma e das crianças na varanda e para que eu nunca mais
passasse dias e noites e dias sentada na poltrona olhando as amendoeiras do
quintal folhas verdes no ar pesado folhas verdes no ar parado.
(* conto do livro Livro rosa: imitando Wittgenstein)
capa do livro O livro rosa: imitando Wittgenstein
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CONSTRUÇÃO
Quase próximo ao rio, o terreno era
plano, maravilhosamente plano.
Alguns homens já estavam a trabalhar,
limpando o mato. Depois que terminassem, tudo dependeria dele, só dele. Andou a
cavalo pelo terreno olhando a qualidade da terra. Depois voltou pelos mesmos
caminhos observando horizontes. Quase sentia a tentação de descer do cavalo e
farejar o caminho como um cão. Estava impaciente e isto era transmitido de modo
nítido ao cavalo que não mostrava a pachorra habitual.
Tantos anos de experiência e ele
possuía a inquietação de um iniciante! Que fazer? Ele é assim mesmo. O sangue
lhe bate nas têmporas, o sol está agora mais alto.
Desce do cavalo e olha a trilha que ele
e o cavalo percorreram para chegar até ali. Talvez deva ser alargada, mas ainda
é cedo para dizer isto. Primeiro deve ter certeza de ser este o terreno
adequado ao templo. O imperador tinha sido bastante claro “Quanto ao templo de Vesta, você decide lugar,
concepção, custos. Pense no esplendor de Roma e no renome de nosso império.”
Ele se curvara em reverência de coração leve como se tivesse recebido um elogio
justo.
Agora,
a responsabilidade lhe caía em cima como um gigantesco bloco. Mas, não
se deixaria abater. Ele também tinha a sua linhagem. Afinal os ensinamentos do grande Vitrúvio, arquiteto
da época de Augusto, não tinham chegado até ele e não estavam cravados dentro
de sua alma? Não tinha ele percorrido, passo a passo, todos os caminhos do
aprendizado, sempre maravilhado com as realizações claras e belas de seus
antecessores? Não tinha a linguagem da arquitetura romana, sobriedade e beleza,
a bem dizer, formado seu caráter? O que havia a recear? Infelizmente tudo.
Tinha tudo a recear. Uma pequena desproporção entre pedestal e coluna, um
frontão mal planejado, uma pedra que não seguisse a outra de modo natural, um
andamento lento demais ou pelo contrário apressado em demasia, tudo enfim, pode
colocar uma obra a perder. Cada obra é única. Em cada uma se aprende alguma coisa ou perde-se o que
já se pensava ter aprendido. Ganhar ou perder! O eterno jogo. Há quantos anos
está neste jogo? Há muito tempo. Jovenzinho acompanhara o pai até os limites do
império ao norte e observara a construção da muralha do Imperador Adriano, um
colosso de sete metros de altura, de cantaria maciça, que se estendia por mais
de cem quilômetros na Bretanha. Lá naquelas regiões ermas, contemplando a
muralha, embaixo de chuva incessante ele sentira o coração bater exaltado pelos
feitos dos romanos. Aquela construção da qual seu pai participava estaria ali
para sempre, para a eternidade. Então descobrira que queria ser arquiteto. Por
pequena que fosse ele também queria a sua parcela de eternidade.
E
agora ela está ali, quase ao seu alcance. O templo teria beleza, sobriedade e
leveza. Leveza com pedras? Como seria possível? Mas ele também já pensara
nisto. O templo terá a forma redonda. Será o único templo romano a ter o todo
redondo. Será muito belo, fará justiça a
Vesta, ao Imperador e a ele, que não terá seu nome inscrito em nenhuma pedra.
Como todos os antigos arquitetos de Roma, ele não precisa disto.
(* conto do livro O livro rosa: imitando Wittgenstein)
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ILUMINADA MENTE
Iluminada amante
que com a doçura férrea
de teus versos
me tens
cativa a mente
(* poema do livro Iluminada MENTE)
página do livro Iluminada MENTE
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NÔMADE
Ah, nômade
Magnífica solitude inteira
Como um Tuareg
Nas areias vermelhas do Saara.
O azul único de seu turbante
Que lembra o azul violeta dos
seus olhos
Evocado por Rimbaud
Poetas são tuaregues disfarçados
Seus rostos que jamais são vistos.
Olhai! No meio da nuvem de poeira
eles e suas esguias, belas e letradas mulheres.
Na tribo as únicas que podiam ler e escrever.
Foram senhores do deserto
quando eram bandidos e atacavam
Lentas caravanas de camelos
Carregados de
Seda, joias de ouro e jade.
Agora tudo acabou.
Miragem que esvaneceu.
Os ritos foram apagados
Passos de crianças nas areias.
Os ricos foram assimilados
Os pobres são mendigos na Argélia,
Niger, Burquina Faso, Mali e Líbia
As jovens se prostituem
Os pobres que tem algum talento
fazem pequenas esculturas de madeira
que vendem nas portas de hotéis.
Vendem seu exotismo para estrangeiros
que jamais compreenderiam
sua visão da vida.
(* poema apresentado em 'Congresso de Filosofia' na UERJ, 2021)
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CANTO 0
Estamos juntos olhando da velha ponte
gaviões que voam alto
e gatos de Istambul
Amor é dar e receber
o mesmo que foi dado
Nem sempre as contas fecham
perde o latim e as rimas
que assim por sina
só pena
como penou o velho gajo
(* poema do livro Cantos)
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