A PROSA E A POESIA DE DANIELLI CAVALCANTI | PROJETO 8M
8M (*)
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
'Dias mulheres virão',
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)
Conheça a palavra, em prosa ou poesia, da escritora brasileira radicada na Dinamarca, DANIELLI CAVALCANTI:
FLOR DE LINZ
(...) Nesta vida de migrante, o retorno nos faz companhia desde a partida: seja pela certeza da volta, pelo medo de que isto aconteça ou até de que não aconteça.
Somos verbo transitivo e de ligação. Uma vez estando aqui, queremos estar lá, outra vez estando lá, queremos aqui estar. No vai e vem de sensações – ora maré alta, ora maré baixa – tocamos o barco. E nesse mar de incertezas, imagino como seria se a razão perguntasse ao coração:
- Até que porto vale a pena prosseguir viagem?
- Sei lá. Às vezes há de se atravessar um oceano para encontrar o que se procura. Só indo para querer voltar. Só indo para ter a certeza de por lá querer ficar. Só indo para querer seguir a velejar. Nas correntes migratórias, há quem passe a vida querendo atracar, mas não encontra um porto seguro. Há quem encontre calmaria num porto e por lá fique. Há quem precise estar, constantemente, em alto mar. Até que Porto? Não sei. Há de se tentar. (...)
(* excerto do livro Flor de Linz)
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A ÚLTIMA VIAGEM DE UM MENININHO
O dia estava muito bonito
A mamãe escolheu a minha roupa mais bonita
Eu não queria calçar os sapatos, esperneei
Ela insistiu, dizendo que a viagem
em busca de paz é muito perigosa
Seu semblante tinha uma mistura
de esperança com desespero
Não sei dizer o que era mais forte
E entramos naquele barco
saindo da praia de Bodrum, no sul da Turquia
A primeira estação seria a ilha grega de Kos
Mas o barco afundou
E eu cheguei no fundo do mar
Estava frio e escuro, queria a minha mãe
Cheguei primeiro à praia
fiquei esperando por ela lá
Queria tirar meus sapatos para brincar na areia
Mas esperei primeiro pela mamãe
Quando a senhora vem, mamãe?
Coloquei meu ouvido na areia para escutá-la
Ela vai gritar com certeza o meu nome
bem alto, até eu respondê-la
Uma pessoa com asas nas costas me escutou
E disse que me levaria até ela
Mas por que o sol está tão triste?
Na praia ele geralmente sorri
Por que a praia está tão vazia?
Acho que está todo mundo ainda debaixo d'água
Por que o céu tem lágrimas nas nuvens?
São tantas perguntas
para tão pouco tempo de vida
Minha mamãe ficará orgulhosa de mim
pois cheguei sozinho na praia
Mamãe, a senhora tinha razão
a viagem foi muito perigosa
Mas acalme-se, não temos mais nada a perder
Estamos finalmente em paz
E eu nem tirei o sapato!
(* poema do livro Flor de Linz)
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PONTE É RETICÊNCIA...
MURO É PONTO FINAL
Ponte é abrangência, muro é confinamento
Ponte é complemento, muro é carência
Ponte é paciência, muro é cimento
Ponte é pensamento, muro sua abstinência
Ponte é convivência, muro é ausência
Ponte é competência, muro é violência
Ponte é passo adiante, muro é desistência
Ponte é resiliência, muro é mortificação
Ponte é ponto de partida, ponte liga vidas
Ponte é ponto de chegada, muro é só encurralada
Ponte é encontro, muro é separação
Ponte é descobrimento, muro é exploração
Ponte é recordação, muro é lamentação
Ponte é resistência, muro é embromação
Ponte é reticência, muro é ponto final.
(* poema publicado nos livros Quando eu outono, tu primaveras! e Coletânea Elas e as letras)
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É SEMPRE OUTONO NA MIGRAÇÃO
Transposição
Entre fronteiras geográficas
E estações biográficas
Entre coloração, exposição, fomentação
É sempre outono na migração
Transformação
Entre o tempo e as paisagens
E custosas passagens
Entre validade, vaidade e asseveração
É sempre outono na migração
Introspecção
Entre imagens e linguagens ditando o rito
Vai-se adaptando o grito
Em sobreposição, justaposição, contraposição
É sempre outono na migração.
(* poema publicado no livro É sempre outono na migração)
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EMBALAGEM TIPO EXPORTAÇÃO
Não é do ser humano ansiar por uma vida melhor?
Por que se nomeia a migração como o problema maior?
Privilégio é viver com segurança num mundo de disparidade
Sacrilégio é não usar seu privilégio para o bem da humanidade
Sortilégio é usar seu privilégio para a manutenção da desigualdade
Egrégio é lutar por um mundo sem privilégio
Privilégio é contemplar o Mediterrâneo
Enquanto ele se torna um cemitério
Quando o vento globalizado aponta e a migração desponta
Privilégio é classificá-la com afronta
Onde é livre a circulação de mercadoria, não de ousadia
Nesse mundo real de fantasia e de fazer conta
Como seria uma migrante tratada, se chegasse empacotada?
Uma ideia para a etiqueta:
Manusear com cuidado, contém dignidade!
(* poema publicado no livro É sempre outono na migração)
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HÁ DE SE DAR VOLTAS AO SOL
Há de se dar voltas ao sol pela cidade
Para que os logradouros lhe saúdem
As esquinas se arredondem
As ruas se aproximem de você
Há de se dar voltas ao sol
Para que as vozes não lhe causem cacofonia
E você esteja preparada para as quatro estações em um dia
Há de se dar voltas ao sol
Para aprender o nome das flores e dos pássaros
Antes de se despedir deles
Há de se dar voltas ao sol
Para se acostumar ao clarão das dez horas da noite
E à escuridão das quatro da tarde
Há de se dar voltas ao sol
Para que o vento friorento não lhe cause mais tormento
E você consiga apreciar a sinfonia da neve
Há de se dar voltas ao sol
Traçando seu caminho coronário na cartografia da cidade
E quanto mais voltas, mais a resposta à pergunta: “de onde você vem?” permanecerá incompleta
Há de se dar voltas ao sol
Para chegar-se aos lugares aos quais se pertence
(* poema publicado no livro É sempre outono na migração)
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
DANIELLI CAVALCANTI é natural da Paraíba, e vive na Europa desde 2004. Trabalhou por quase 10 anos na Ong 'Maiz', em Linz, na Áustria. Desde 2016 reside em Kolding, na Dinamarca. É escritora, bacharel em Educação para o Ensino Fundamental na Dinamarca, escreve sobre 'viver sob o manto e entre a cerca da migração' (no blog jardimmigrante.wordpress.com), além de também escrever poesia e literatura infantil.
Livros publicados: Flor de Linz (em português e alemão, 2016); Quando eu outono, tu primaveras (poesia, Kolding/Dinamarca, 2018); É sempre outono na migração (poesia, em português e alemão, Kolding/Dinamarca, 2019); Sopa de Sapo' (infantil, em português, dinamarquês e em alemão, 2018/2019); Lourito na Dinamarca (infantil, 2020); O que não se faz por amizade? (infantil, Kolding/Dinamarca, 2020); e Casa de farinha (infantil, 2023).
Participação em coletâneas/antologias: Mulherio das Letras Contos e Crônicas - volume 2 (org. Henriette Effenberger, Recife: Mariposa Cartonera/2017); 2a. Coletânea Poética Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo: ABR/2018); Mulherio das Letras na Europa – Outubro Literário (2018); Elas e as Letras (org. Aldirene Máximo e Julli Veiga, São Paulo: Versejar/2018); Com o Pé na Terra (coletânea infantil, Caleidoscópio/2018); Sou Mulher, Logo Existo! Amor, Liberdade, Luta e Resistência - 3a. Coletânea de Poesias e Prosas Mulherio das Letras (org. Vanessa Ratton, São Paulo: ABR, 2019); Mulherio das Letras Portugal - Poesia (org. Adriana Mayrinck, Lisboa/PT: In-Finita/2020); entre outras.
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