OITO POEMAS DE MARLENE DE FÁVERI | PROJETO 8M
fotografia do arquivo pessoal da autora
8M (*)
Mulheres não apenas em março.
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
'Dias mulheres virão',
mulheres verão,
para crer, para valer!
(Nic Cardeal)
Mergulhe na poesia feminista - pulsante, ardente, dolorida, resistente - da grande escritora MARLENE DE FÁVERI, em oito poemas selecionados de seu livro SE PULSA, ARDE E RESISTE:
SANTO CORPO
Santo corpo de carnes cruas,
Despe tuas curvas e
Deixa nus somente os olhos,
Púbis, pernas, seios, pelos,
Ventre, fortaleza do ovário,
Sacrário da procriação,
O alimento mais caro
Brota do peito,
Seios de Vênus
Pernas que marcham
Braços que embalam
Mulher, corpo santo,
Mulher, santuário.
(p. 26)
-*-
VIGIO POR NÓS
Turvo, 37 graus.
Anoitece. Raios
e trovões medonhos
chuva em torrentes
ventos tinem os ouvidos,
galhos das árvores
despencam
folhas revoam enquanto
espreitam-me os lumes de
duas velas trêmulas.
É oito de março.
Vigio por todas que
resistiram aos insalubres
chãos de fábricas
às labaredas em suas
carnes, ossos, úteros
- Lágrimas de fogo
ainda ardem em nossas
faces - das cinzas,
colhemos sementes
Vigio por todas que
resistiram nos campos
nas cozinhas das sinhás
nos lavadouros
por aquelas que marcharam
por "pão e paz", por voto
e dignidade.
Vigio por todas as que foram
violentadas nos porões das
ditaduras, e tiveram as vidas ceifadas
por serem mulheres
- Marielle Franco, presente! -
Por todas que foram vendidas,
amordaçadas, aliciadas por
cafetões imundos
assediadas por patrões sórdidos
silenciadas nas clausuras.
Vigio por todas nós -
nossas mães, nossas irmãs
nossas filhas e por todas
as companheiras - por
integridade de nossos corpos,
nossas lutas, nossas vontades
e por nossas felicidades.
(pp. 28-29)
imagem do Pinterest
-*-
A GENTE QUER
A gente não cabe mais
em nenhum protocolo
que venha das normas
patriarcais
A gente quer sair dos
quadrados,
quer pular muros
patrimoniais
A gente quer refletir,
elaborar, propor
e decidir, quer
paridade e participar.
A gente quer juntar
desejos, segurar
as mãos.
O que a gente quer
melhorar a
vida das mulheres
- NENHUMA MORTA
NENHUMA VIOLADA
NENHUMA USURPADA
NENHUMA ENCARCERADA
NENHUMA DESPREZADA
NENHUMA A MENOS -
A gente quer a paz,
o companheirismo, a parceria.
A gente merece respeito,
felicidade e harmonia.
(pp. 44-45)
imagem do Pinterest
-*-
NÃO É NÃO
Às vezes me escapam
As palavras certas
Tantas que tenho!
Poderosas, orgásticas
Memoriosas.
Às vezes eu grito
Com a força das
Fêmeas raivosas
Denunciativas, ácidas
Furiosas
Com quais palavras
Tocaria as almas
Dos homens?
Com quais verbos
Entenderiam que
Não é não?
(pp. 48-49)
imagem do Pinterest
-*-
VENENO
Tu que, em nome de um deus,
Insistes em controlar o
sexo das mulheres,
não te atinas do diâmetro
de tua ignorância?
Em qual escritura bebes do
veneno que destilas com
ameaças de pecado e fogo
eterno, sob cobrança de
obediência e submissão?
Quais demônios te guiam
sempre que bradas no púlpito
que a culpa pelos males é delas,
e usas um deus para pregar
falsos mandamentos?
Lúcifer no comando
a te atrofiar o cérebro!
Ópio e poder.
(p. 52)
imagem do Pinterest
-*-
A SOCIEDADE EM QUE VIVO
A sociedade em que eu vivo
assassina crianças indígenas
negras, brancas
mata mulheres negras, brancas,
indígenas
elimina homens brancos
indígenas, negros.
Polui as águas e o ar,
envenena animais, plantas
e as terras
A sociedade em que eu vivo
vomita fúria golpista
mata corpos e
sonhos de mulheres e homens
negros, indígenas
e brancos.
Posa de cristã e é fascista
machista, racista,
capacitista, trans-homofóbica
classista e etarista.
A SOCIEDADE EM QUE VIVO
ADOECE DE PODER E GANÂNCIA
MOVIDA PELOS ÓDIOS DA
BARBÁRIE CAPITALISTA.
(pp. 56-57)
imagem do Pinterest
-*-
CUMPLICIDADE
Desde quando nos
queimaram nas
fogueiras, não
paramos mais
de arder.
Nossos úteros
carregam a fúria
de nossas cúmplices
ancestrais.
Somos feitas do barro
que as limalhas
não conseguiram
romper.
(p. 71)
imagem do Pinterest
-*-
DAS REBELDIAS
Do que me agride, espicaça e quebra
teço cordas e, com elas, faço nós
Para coisas que me aferroam, doem e
ardem, tenho lâminas do ventre
Do que ainda me afronta, golpeia e
insulta, destilo golfadas felinas -
sirvo-as em cálices que podem cortar.
É que, por ser mulher, precisei de fúria
aprendi que muros a gente pula
portas a gente abre, cercas a gente
quebra, dogmas a gente rompe,
Janelas são para iluminar - e,
por ter vontades, a gente quer,
deseja, experimenta e pode decidir.
As melhores amizades eu preservo
assim como os impudicos amantes
violetas coloridas na janela,
o porta-retrato de minha filha
cartas de amor em folhas amarelas
os conselhos de minha mãe - e
cadernos para me reinventar.
É que, mesmo com minhas pressas,
cultivo o sabor de esperar
todavia, senhora de meus domínios,
entre frêmitos, caprichos e ânsias fêmeas
sigo correndo riscos nos
desdobres costurados no devir.
Vivo o presente - que é o real
O que passou é alicerce e memória
O futuro? Entre as dobras de meus
anos ainda guardo utopias
teço versos uterinos - e,
como mulher rebelde - sigo
conjugando o verbo ousar.
(pp. 86-87)
imagem do Pinterest
-*-
(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
MARLENE DE FÁVERI é natural de Nova Veneza/SC e vive em Florianópolis/SC.
É graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, e em História pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALE. Fez mestrado e doutorado em História pela UFSC.
Trabalhou como professora associada e passou a titular na Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, onde lecionou nos cursos de Graduação e Pós-graduação em História - História do Tempo Presente (disciplinas de História e Relações de Gênero, História das Américas, Metodologia com ênfase em História e Cultura).
Participa do "Grupo de Pesquisa Relações de Gênero e Família" (CNPQ), e do "Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF)". É membro do "Grupo de Trabalho de Gênero da Associação Nacional de História (ANPUH)", do "Instituto de Estudos de Gênero (IEG)". Também é membro da "Associação de Jornalistas e Escritoras (AJEB)".
É escritora (historiadora, cronista, poeta) e feminista. Publicou livros, capítulos e artigos com os temas feminismo, mulheres, masculinidades, relações de gênero, divórcio, mídias, mercado do sexo, segunda guerra, educação.
Em 2005 recebeu o prêmio "Lucas Alexandre Boiteux", concedido pelo "Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGB/SC)", pelo livro "Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra em Santa Catarina" (Editora da UFSC, 2002).
Foi indicada para o "Prêmio Darcy Ribeiro de Educação/2017", recebendo "Diploma de Mérito".
Recebeu a "Comenda do Legislativo Catarinense" em 2017.
Possui dezenas de poemas premiados e publicados em coletâneas.
Livros publicados: Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra em Santa Catarina (História, Editora da UFSC, 2002); Crônicas da incontingência da clausura - cotidianos na pandemia (crônicas, Letras Contemporâneas, 2021, volumes 01 e 02); O ultra-realismo na cena literária de Itajaí (organizadora, Traços & Capturas, 2022); Se pulsa, arde e resiste (poemas feministas, Infinitta Leitura, 2022); Quando chega a primavera (participação na Primeira Antologia Poética Mulherio das Letras Santa Catarina, org. Flávia Quintanilha, Folha Editora, 2023); Nós, textos de autoria feminina (participação em antologia, Selo Off Flip, 2023); Um corpo que goza não envelhece (no prelo, 2023); entre outros.
Comentários
Postar um comentário