A POESIA IMPRESSIONANTE DE PATRICIA PORTO | PROJETO 8M

fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
'Dias mulheres virão', 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)

Mergulhe na poesia impressionante de PATRICIA PORTO:


ESPÓLIOS

No acervo da casa grande
lá se amontoam esqueletos de objetos particulares:
pequenezas, miudezas, pequenas confissões dos muitos e presos,
de todos os respectivos fantasmas,
roendo em pós os pés dos móveis
respectivamente familiares.
Testemunhas reticentes alegam que há apenas discórdias e inventários,
divisões de bens há séculos amaldiçoados pela feliz coincidência burguesa.
Tanta tola existência!
Por que então não recusar repassar as promissórias do passado?
- Perguntam os fantasmas, olhando pela escotilha.
Por que não enterrar os mortos da família com seus panos e dejetos sepulcrais?
Por que não cessar a voz aos alhures e às pragas de maldição? Sim, mas, quem o faz?
De soberba vive o velhaco com cheiro de urina, guardando em relicários
as carnes, os pedaços arrancados dos santos.
Não, não se pode assim riscar de vez os tortos nomes sobrenaturais
para rasgar os papéis e as certidões!
Que tola insistência!
Sabem, porém, que na lacuna do invento,
no espelho que já não quebra mais mãos,
uma criança, um menino de espírito livre
pode libertar o baú dos mortos
e ousar reverter a história
- para cortar inocente
- e cálido -
a árvore verossimilhante:
pela raiz.

(* poema publicado na Revista Biografia, 10.07.2012)

imagem do Pinterest 
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O OPERÁRIO E A BAILARINA 

ele ergue em torno de si
uma sólida fábrica -
de armações de aço,
ferros e maquinarias

enquanto isso...
ela flutua no espaço
e move com seus passos
o tempo derretido

ele sobe em alturas
que parecem incríveis
e cerca-se de arames
sempre tão farpados!

e enquanto isso...
ela dança vestígios
e sobe em telhados
pra viver de estrelas!

ele veste capas e seu uniforme,
ele ouve sinais, ele canta ordens
sai às tantas - sempre pronto em ponto,
ele é a disciplina; é o operário:
a vida é certeza

ela escreve versos,
inventa cantigas,
dizem que é louca
sua crença e sina,
ela é a bailarina

mas, quando estão juntos:
ela rega plantas,
ele veste rios,
ela faz café,
ele conta histórias,
ele repousa em seu ventre,
ela costura bainhas,
ele cose o amanhã,

ela desenferruja as trancas,
ele ordenha o futuro,
ela adormece...
ele adormece...
não há nada que os separe

ele é todo corpo,
ela é o esquadro

eles se encontram,
se perdem inexatos
libertam seus fardos,
fazem-se os sentidos,
ela é a operária,
ele, o bailarino

...

e tudo, tudo que era tão sólido
se desmancha no ar...

(* poema publicado na Revista Biografia, 10.07.2012)

imagem do Pinterest 
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CASA VELHA

esse poema é uma casa com vista para os fundos
nele há notícias velhas de escombros
uma parede infiltrada 
arranhões e fraturas

parece um poema antigo desabitado
mas é só um poema em demolição

casa pequena posta abaixo
para a construção insalubre
de um arranha céu
na garganta
feito nó
apertado
- uma cinta

(* poema publicado no livro Cabeça de antígona)

imagem do Pinterest 
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LUMIEIRO

o poema nasce da ilha
onde renascemos todas as manhãs
entre um phantom e outro
entre fins e exaustão
o poema naquela pequena ilha
deserta de nós
será que nos vai acender a luz?
sons de sinos vêm de longe
será que vamos nos encontrar, meu amor?
por que não te ouço?
não morremos no mar
nossos corpos são dos rochedos
nenhum lago é tão profundo ou salgado
nossos cavalos correm
minha criança pequena consumida pela espuma
todo poema é consumação
todo poema me consome pelas pontas dos dedos
me arrepia a pele antes da quase morte
nada se faz mais corpo diante das profecias divinas
e essa babel que me beija os lábios
aprende da minha língua os bens dos animais selvagens
longe da perfeição

voa a nova criatura agora sem palavras
não há mais ameaças
nem os imperativos esmagam meus mamilos
contra as paredes

nenhuma violência
tudo parece tão fresco, fruto humano
e não morreremos no mar

atravessei dois oceanos
e vi as extinções

mas hoje na ilha
a criatura-poema se insurgiu
é terra de sangue sem aflição

sem desespero
sem dizer palavras mais
nos desilhou entre braços levantados

- nem o céu acreditou

(* poema extraído do blog pporto.blogspot.com, 05.10.2019, in: Amor e Revolução)

imagem do Pinterest 
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AS CINZAS DO MARTELO

Como escrever a poesia
se a palavra nos golpeia na cara?
Era um poema rude, sim, o que fiz
quando ela foi embora
Era um poema de mãos pequenas estilhaçadas,
os olhos, uns fragmentos de corpo,
Era um poema para ficar à deriva, beber da água
da menina morta, torturada
Era para ser o primeiro poema, mas não existiu
Ficou na língua, alimentando de amor as feras,
fazendo esse cansaço na memória, engodando o destino,
Era um poema e ficou sem voz,
atravessado de mar morto, um espinho na água morna
Os olhos não voltam,
os olhos seguem para a frente, criança
Inclinados sobre réquiens,
olhando o capim crescer,
vê um martelo, um quadro,
paredes brancas
Era um poema ou quase foi,
uma noite acordou ao meio:
nas cinzas do martelo
Duvido mesmo que tenha existido

(* poema publicado na Revista Caliban, 15.06.2020)

imagem do Pinterest 
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NUNCA FUI BENDITA

onde posso beber dos olhos da santa? Onde encontrar o macio dos braços da infância que não tive?

o martelo atravessou a janela quebrando meus braços. A arte é o movimento esquizoide dos meus abraços para o amor que sempre me rejeita em caleidoscópio.

_mãe, por que as mulheres choram?

atravesso uma sala, duas três. corro contra o meu tempo. não vivi ainda tudo. por favor, não tranquei a porta. mas é tarde demais quando me agarro aos teus cabelos e me escondo.

quando me vejo estou nua de novo entre os convidados do jantar.

pai, que dia morri?

servidos?

um beijo na nuca. um vento que tranca as dores nos olhos que tanto dei.

mais uma fatia?

mordam com vontade.

nunca fui tão bonita assim

como agora entre vossos dentes.

(* poema publicado na Revista Ruído Manifesto, 22.07.2020)

imagem do Pinterest 
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sim, eu tentei ser toda gente

mas tudo em mim foi vírgula mal colocada 
excessiva ou faltosa
uma linguagem extraviada
um deserto querendo mapa

um punhal caindo do céu 
uma tormenta 
uma ligação que escapa 
uma democracia arruinada
um nevoeiro desejando fog

abraço meus fantasmas 
por minha meritocracia
como da própria carne:
uma canibal faminta, alucinada,
que na incapacidade de dizer da morte,
assobia, morde,  chora, treme
coagula e fica nua no final -
no ato corajoso de ser sua verdade:

uma fera sempre será uma fera 

mas, sim, eu tentei ser toda gente
.
.

(* poema publicado em sua TL Facebook,  17.12.2023)

fotografia do arquivo pessoal da autora 
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.


fotografia do arquivo pessoal da autora 

PATRÍCIA PORTO é maranhense, professora universitária, graduada em Letras, especialista em Alfabetização, mestra e doutora em Políticas Públicas e Educação Linguística. Participante da exposição coletiva 'Cartografias do Comum: projeto múltiplo de arte impressa', Espaço do Conhecimento (UFMG-BH/2014); e da individual 'Anatomia para Colorir', Espaço Culturama (GO/2017), entre outras. Seus textos estão publicados em diversas revistas e coletâneas no Brasil e exterior. Integra o Movimento 'Mulherio das Letras'.

Livros publicados: Narrativas memorialísticas: por uma arte docente na escolarização da literatura (obra acadêmica, CRV/2010);  Sobre pétalas e preces (poesia, Multifoco/2013); Diário de viagem para espantalhos e andarilhos (poesia, Autografia/2014); Cabeça de Antígona (poesia, Reformatório/2017); A memória é um peixe fora d'água (contos, Penalux/2018); Poemas de Portinari (organizadora, Funarte/2019); Casa de boneca para elefantes (poesia, Penalux/2019 e Patuá/2019, semifinalista do Prêmio Oceanos 2020); O ano do cão (poesia, Penalux/2022).



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