CINCO POEMAS DE GIRLENE VERLY | DO LIVRO "O CORPO SABE QUE É TERÇA, MAS SE DISTRAI"
Cinco poemas de Girlene Verly
do livro
"O corpo sabe que é terça,
mas se distrai"
CORPO HISTÓRICO
nascemos cruas
e crescemos
à espera
do que não se sabe bem
o quê
crianças, somos expostas
e crescidas, criamos couraças
armaduras invisíveis
que nos ensinaram a vestir
para nos livrar dos nãos
e de nós
e nossas cores, tão lindas
de nascença
nossos cabelos tão nossos
felizes e displicentes
começam a incomodar
o outro
a ponto de nos afligir
seu embaraço
a ponto
de termos que nos esconder
de nós mesmas
por termos nascido
assim
e não assadas
-*-
SÓ SEI SENTIR
só
sei sentir
por isso dei pra escrever sobre o que me rouba
a paz
sobre o que me cansa
sobre o que me causa
transbordamentos
sento e escrevo
pensando que será uma coisa que
quase
nunca é
permito que o branco da tela se tinja
enquanto retomo a ideia inicial
mutante e
fugidia
leio, releio
de olhos fechados
vejo
o que cheira, o que fere
a carne do verbo
o casmurro pleonasmo
pesquiso a palavra mais próxima e
se der sorte
a exata
o vômito quente prossegue
se espalhando em metamorfose
até que lhe firme alguma consistência
um corpo-esboço
uma esperança em gota
um copo de lágrima
ou
algum contentamento
* O pior é que acontece dessas criaturas não ficarem prontas nunca
mas também acontece de ficarem
e eu voltar a ter as narinas livres para respirar
a cabeça fria para tomar um banho e esquentar o jantar.
imagem do Pinterest
-*-
DESCOMPASSO
cá estou fora do tempo
a desconhecer seu princípio
e fim
cá estou a pegar o ritmo
a lutar para decifrar
o código
cá de fora rio
ou será que riem de mim?
posso até acreditar
que conduzo meus próprios passos
que sou amiga do instante
que ele me pega pelas mãos
corremos juntos
e que não me ameaça
mas só
eu sei
como estou cá
por dentro
imagem do Pinterest
-*-
QUANDO O REAL DILACERA
o resto de esmalte na unha
os pés trincados
a menstruação que demorou
e não veio
é real
também é real o café
coado e comido, às pressas
a roupa amarrotada
que testemunha
o ponto de ônibus lotado
o motorista petulante
o real é beira e borda
é náusea, é trapo
é o tomara-que-caia
que denuncia
o queimado da pele
o real habita o ventre
ingênuo, que pulsa, censurado
nem nasceu e já tem história:
pré-conceito, pré-natal
pré-eclâmpsia, cesárea
agora é amamentar
alimentar e aumentar
a imunidade
para as doenças do corpo
para os males da sociedade
placebo
imagem do Pinterest
-*-
MATURIDADE
dizem que o bom da maturidade é a
sabedoria
sinto informar
no meu combo
que inclui ruguinhas fofas
fios brancos e flacidez
faltou esse item
de brinde veio a petulância
um certo desprezo
pelo que me esgota
e até uma ousadia para ser
feliz
sozinha
sem vergonha
nem vontade de prestar
contas
também virei uma contra-lei
sou contra todas
que oprimem o corpo e as ideias
e nos obrigam a nos vestir
dos outros
de carimbos
nacionais ou
made in China
-*-
fotografia do arquivo pessoal da autora
GIRLENE VERLY é escritora mineira. Formada em dançaterapia, é bailarina de dança oriental. É graduada e mestre em Letras pela UFSJ, e doutora em Literatura Comparada pela UFMG.
Tem participado de antologias de contos e poesias, e de revistas literárias. Em 2023 publicou o livro O corpo sabe que é terça, mas se distrai (poesia), pela Editora Folheando. Foi selecionada para a Antologia Nós, do Selo Off Flip. Seu novo livro Dança de samambaias (poesia), está em pré-venda pela Editora Patuá. Pode ser encontrada no Youtube: Girlene Verly; e no Instagram: @autora_verly.
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