Não existe único golpe que rompa o tecido de uma relação. Provocados como por cebola se dando ao corte, os olhos extravasam essas lágrimas, na despedida que se prolonga sempre: preferiam por certo não chorar. A separação é longa e má, rouba as lembranças boas. O precavido rouba sementes de outros sentimentos para o amanhã.
(* conto Dezoito, do livro Cacos - momentos que fi(n)cam)
capa do livro Cacos momentos que fi(n)cam
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Trecho de um romance em construção:
A imagem que tenho de você grávida é estática e desbotada: uma foto em que você veste uma bata avermelhada estampada com joaninhas miúdas, e duas joaninhas grandonas pintadas em dois retalhos de tecido branco que se tornaram bolsos – uma moda que hoje soa um pouco ridícula, infantil demais. O retrato não extrai de mim nenhum momento vívido, mas é importante como uma estaca ao longo da estrada.
Não lembro também da morte da vovó: apenas uma ausência que começara bem antes, quando ela sofreu um derrame e nunca mais voltou a morar conosco. Foi muito depois que relacionei esse tempo de acontecimentos familiares intensos com um período em que meu pai esteve muito presente – você, esquelética, foi para algum lugar junto com Regina e a bebê recém-nascida. Só eu fiquei na casa da vila. Eu e papai.
Ele trouxe a Remington e passou a trabalhar ali na sala, eu por perto. Era um cara sério e compenetrado. Fazia anotações a mão com uma letra toda cheia de voltinhas, como se fosse um fio de telefone enrodilhado como mola, formando as palavras que nunca ficavam completamente soltas umas das outras.
Depois sentava à máquina e copiava com toda atenção. Pedia para eu não atrapalhar.
Nunca me ocorreu desobedecer ao meu pai quando eu era menina. Nem consigo imaginar que fazia alguma coisa enquanto ele escrevia os pareceres – que era o que eu sabia sobre o que meu pai fazia. Ele escrevia o que achava das coisas depois de ler e pensar.
Fiquei logo fascinada pelas pequenas hastes de metal que subiam e desciam carimbando o papel. Depois que ele largava a máquina e passava a pesquisar nos livros e nos maços de papéis presos a umas capas de cores esmaecidas, umas puxando para o rosa, outras para um tom azulado ou verde pálido, eu supunha que era a minha vez. Meu pai, desde o princípio, deixara claro que a máquina não era brinquedo. Então entramos em um jogo bem nosso: inventei algo que ele não ia negar. Posso copiar uma história? Sou capaz de imaginar a cara de orgulho dele – sempre gostou quando eu arranjava um jeito esperto de agir dentro das suas regras, algo que depois, muito depois, passei a chamar de obediência inteligente.
Passei outras tardes – ou noites? – ali rondando papai. Foi quando fiz as certidões de nascimento de minhas bonecas, sugestão dele provavelmente. Receberam nome, ganharam pai e mãe cada uma das minhas bonecas. Só um detalhe era sempre igual: todas foram registradas no subdistrito de Cerqueira César ali mesmo onde eu nasci.
Deve ter sido nessa época que papai me pediu pela primeira vez: seja compreensiva com sua mãe. Me ajude a cuidar dela.
(* trecho de romance em construção, extraído da Revista Ruído Manifesto, de 27/06/2021)
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O ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA
Contra o vírus se pode
mãos desinfectadas
máscara posicionada
distância de segurança um metro e vinte
o ânimo desalentado: isso não
A ciência
os cuidadores e eu
Precisamos da abnegação que não se contamina
da mão para dar apoio e alimento
do olhar
da atenção
e da imensurável proximidade para se sentir como
o doente
o amigo da doente
a mãe
o filho
de quem se foi
sufocado às vezes
isolado ou sozinha
O ânimo também requer vacina
(ainda mais quando fortalece o vírus um verme)
(* poema integrante da antologia Dias Distantes, p. 13)
capa do livro Dias distantes
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.
fotografia do arquivo pessoal da autora
CIÇA LESSA (Ana Cecília Lessa) é graduada em Letras (Francês/Português, USP/SP) e em Jornalismo (PUC/SP), com mestrado em Comunicação Social pela ECA/USP e especialização em Gestão de Pessoas e Projetos (UNIFEI). Também fez especialização no Núcleo de Formação para Escritores, no Instituto Superior Vera Cruz. Trabalhou em revistas para adolescentes e mulheres, como na revista Capricho, por exemplo, período da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da consolidação do conceito da adolescência, escrevendo matérias sobre comportamento e sexualidade. Na Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, passou 4 anos à frente da Supervisão dos Programas VAI (Valorização às Iniciativas Culturais) e Fomento à Cultura da Periferia. Recentemente passou a atuar em organizações sociais, como articuladora de ações em rede e gestora de projetos nas áreas de direitos da criança e do adolescente e de comunicação. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde a sua criação, em 2017. É autora de livros de literatura e de não-ficção. Desenvolve atividades para escritoras, como a oficina "A Mulher que se Escreve", a qual "propõe uma reflexão sobre os aspectos da escrita como instância de elaboração subjetiva"; e "recorre ao feminismo como campo de ação e conhecimento central para a consciência dos papéis de gênero e potencializador da expressão". Ainda, de acordo com Ciça, "o curso é indicado para quem escreve ou namora a ideia. Qualquer coisa e todos os tipos de textos: ficção ou não-ficção, poesia ou prosa".
Em 2011 participou do livro Vida em rede: conexões, relacionamentos e caminhos para uma nova sociedade (com Cássio Martinho, Dalberto Adulis, Ilse Scherer-Warren e Ricardo Wilson-Grau, org. Cássio Martinho e Cristiane Félix, Laudes Foundation e Instituto C&A). Em 2017 publicou o livro Cacos: Momentos que Fi(n)cam (contos, São Paulo/SP: Editora Instante/Amora). Participou da Coletânea Mulherio das Letras Contos e Crônicas (Volume 1, org. Henriette Effenberger, Recife/PE: Mariposa Cartonera, 2017). Também integra o grupo de 23 escritores da Antologia Dias Distantes (org. Dalila Teles Veras, Santo André/SP: Alpharrabio Edições, 2021); entre muitas outras obras.
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