A PALAVRA MARCANTE DE CIÇA LESSA | PROJETO 8M


fotografia do arquivo pessoal da autora 

8M (*)

Mulheres não apenas em março. 
Mulheres em janeiro, fevereiro, maio.
Mulheres a rodo, sem rodeios nem receios.
Mulheres quem somos, quem queremos.
Mulheres que adoramos.
Mulheres de luta, de luto, de foto, de fato.
Mulheres reais, fantasias, eróticas, utópicas.
Mulheres de verdade, identidade, realidade.
"Dias mulheres virão", 
mulheres verão,
pra crer, pra valer!
(Nic Cardeal)


Navegue na palavra surpreendente de CIÇA LESSA:


UM(AS MAROLAS)

Quando se viraram para sair
do mar, ela se perguntou se as amigas da areia teriam visto. Fora prolongado o beijo deles, a língua das marolas roçando as suas pernas o tempo todo, e o desejo espraiado pelas ondas arrebentando com mais ímpeto a intervalos. Devagar, como quem alonga também os sentidos, caminharam em direção aos outros já acomodados junto às mesas da barraca arrumada para a festa.  Estavam bem perto quando o braço dele passou sobre seu ombro. Uma descarga elétrica cruzou seu corpo, estremeceu. Teve vontade de se jogar na areia tomada pela felicidade espontânea e descontrolada de uma criança pequena ao chegar à praia. O gesto lhe pareceu um pedido de namoro. Ela aceitava.

Não que pensasse; a cabeça estava vazia de tudo que não fosse estar com ele, e o tato e a respiração a ocupavam. Ouvia até o sangue fluir. Feito a espuma clara das ondas na noite escura, a ela sua decisão se ofereceu evidente, combinando com o vestido branco que usava. 

Ele então passou a segurar a mão de uma garota que tinha a ansiedade e o desejo de uma noiva. Para a meia-noite, faltava menos de uma hora a esperar na praia, a música, a dança e a bebida. Às vezes ele fazia a ponta dos dedos ultrapassarem o limite das costas dela e tocarem seu seio; em resposta, ela alisava mais forte ombro e braço - avanços controlados e compridos, prazer denunciado discretamente em risos cúmplices. 

Foi só a queima de fogos começar. Ele a puxou pelo braço e, juntos, seguiram rumo ao prédio que dava direto na areia. Tudo como se tivessem combinado em detalhes. Superados os três lances de escada, pararam em frente à porta. Ele estava com a chave e a conduziu direto ao quarto da cama grande.

Tirar as roupas foi natural, estavam úmidas. Vem cá. Foi aí que ela sentiu a areia grossa lixando direto a pele. Ele não. Rápido, se ajeitou sobre ela e molhou a mão de cuspe. Gesto bruto demais: ela se desvencilhou e levantou. Ele se irritou. Menina, vem cá. Não, vou tomar um banho. O trinco da porta disse o resto.

(* conto publicado na coletânea Mulherio das Letras Contos e Crônicas  - Volume 1 e no livro Cacos - momentos que fi(n)cam)

imagem do Pinterest 
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Conto dezoito

Para ir embora, é preciso arrancar folhas costuradas: desapegar do outro não é fácil nunca. Mesmo que a separação resulte de um rasgo grande.
Não existe único golpe que rompa o tecido de uma relação. Provocados como por cebola se dando ao corte, os olhos extravasam essas lágrimas, na despedida que se prolonga sempre: preferiam por certo não chorar. A separação é longa e má, rouba as lembranças boas. O precavido rouba sementes de outros sentimentos para o amanhã.

(* conto Dezoito, do livro Cacos - momentos que fi(n)cam)

capa do livro Cacos momentos que fi(n)cam
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Trecho de um romance em construção

A imagem que tenho de você grávida é estática e desbotada: uma foto em que você veste uma bata avermelhada estampada com joaninhas miúdas, e duas joaninhas grandonas pintadas em dois retalhos de tecido branco que se tornaram bolsos – uma moda que hoje soa um pouco ridícula, infantil demais. O retrato não extrai de mim nenhum momento vívido, mas é importante como uma estaca ao longo da estrada.

Não lembro também da morte da vovó: apenas uma ausência que começara bem antes, quando ela sofreu um derrame e nunca mais voltou a morar conosco. Foi muito depois que relacionei esse tempo de acontecimentos familiares intensos com um período em que meu pai esteve muito presente – você, esquelética, foi para algum lugar junto com Regina e a bebê recém-nascida. Só eu fiquei na casa da vila. Eu e papai.

Ele trouxe a Remington e passou a trabalhar ali na sala, eu por perto. Era um cara sério e compenetrado. Fazia anotações a mão com uma letra toda cheia de voltinhas, como se fosse um fio de telefone enrodilhado como mola, formando as palavras que nunca ficavam completamente soltas umas das outras.

Depois sentava à máquina e copiava com toda atenção. Pedia para eu não atrapalhar.

Nunca me ocorreu desobedecer ao meu pai quando eu era menina. Nem consigo imaginar que fazia alguma coisa enquanto ele escrevia os pareceres – que era o que eu sabia sobre o que meu pai fazia. Ele escrevia o que achava das coisas depois de ler e pensar.

Fiquei logo fascinada pelas pequenas hastes de metal que subiam e desciam carimbando o papel. Depois que ele largava a máquina e passava a pesquisar nos livros e nos maços de papéis presos a umas capas de cores esmaecidas, umas puxando para o rosa, outras para um tom azulado ou verde pálido, eu supunha que era a minha vez. Meu pai, desde o princípio, deixara claro que a máquina não era brinquedo. Então entramos em um jogo bem nosso: inventei algo que ele não ia negar. Posso copiar uma história? Sou capaz de imaginar a cara de orgulho dele – sempre gostou quando eu arranjava um jeito esperto de agir dentro das suas regras, algo que depois, muito depois, passei a chamar de obediência inteligente.

Passei outras tardes – ou noites? – ali rondando papai. Foi quando fiz as certidões de nascimento de minhas bonecas, sugestão dele provavelmente.  Receberam nome, ganharam pai e mãe cada uma das minhas bonecas. Só um detalhe era sempre igual: todas foram registradas no subdistrito de Cerqueira César ali mesmo onde eu nasci.

Deve ter sido nessa época que papai me pediu pela primeira vez: seja compreensiva com sua mãe. Me ajude a cuidar dela.

(* trecho de romance em construção, extraído da Revista Ruído Manifesto, de 27/06/2021)

imagem do Pinterest 
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O ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA

Contra o vírus se pode
                   mãos desinfectadas
                   máscara posicionada
                   distância de segurança um metro e vinte 
o ânimo desalentado: isso não 

A ciência 
os cuidadores e eu
Precisamos da abnegação que não se contamina
da mão para dar apoio e alimento 
do olhar
da atenção 
e da imensurável proximidade para se sentir como
                               o doente
                               o amigo da doente
                               a mãe 
                               o filho
                               de quem se foi
                               sufocado às vezes
                               isolado ou sozinha

O ânimo também requer vacina
(ainda mais quando fortalece o vírus um verme)

(* poema integrante da antologia Dias Distantes, p. 13)

capa do livro Dias distantes
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(*) 8M: 8 de Março = Dia Internacional da Mulher: Projeto 'Homenagem a mulheres escritoras/artistas', iniciado em março/2021, por Nic Cardeal.

fotografia do arquivo pessoal da autora 


CIÇA LESSA (Ana Cecília Lessa) é graduada em Letras (Francês/Português, USP/SP) e em Jornalismo (PUC/SP), com mestrado em Comunicação Social pela ECA/USP e especialização em Gestão de Pessoas e Projetos (UNIFEI). Também  fez especialização no Núcleo de Formação para Escritores, no Instituto Superior Vera Cruz. Trabalhou em revistas para adolescentes e mulheres, como na revista Capricho, por exemplo, período da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da consolidação do conceito da adolescência, escrevendo matérias sobre comportamento e sexualidade. Na Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, passou 4 anos à frente da Supervisão dos Programas VAI (Valorização às Iniciativas Culturais) e Fomento à Cultura da Periferia. Recentemente passou a atuar em organizações sociais, como articuladora de ações em rede e gestora de projetos nas áreas de direitos da criança e do adolescente e de comunicação. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde a sua criação, em 2017. É autora de livros de literatura e de não-ficção. Desenvolve atividades para escritoras, como a oficina "A Mulher que se Escreve", a qual "propõe uma reflexão sobre os aspectos da escrita como instância de elaboração subjetiva"; e "recorre ao feminismo como campo de ação e conhecimento central para a consciência dos papéis de gênero e potencializador da expressão". Ainda, de acordo com Ciça, "o curso é indicado para quem escreve ou namora a ideia. Qualquer coisa e todos os tipos de textos: ficção ou não-ficção, poesia ou prosa".

Em 2011 participou do livro Vida em rede: conexões, relacionamentos e caminhos para uma nova sociedade (com Cássio Martinho, Dalberto Adulis, Ilse Scherer-Warren e Ricardo Wilson-Grau, org. Cássio Martinho e Cristiane Félix, Laudes Foundation e Instituto C&A). Em 2017 publicou o livro Cacos: Momentos que Fi(n)cam (contos, São Paulo/SP: Editora Instante/Amora). Participou da Coletânea Mulherio das Letras Contos e Crônicas (Volume 1, org. Henriette Effenberger, Recife/PE: Mariposa Cartonera, 2017). Também integra o grupo de 23 escritores da Antologia Dias Distantes (org. Dalila Teles Veras, Santo André/SP: Alpharrabio Edições, 2021); entre muitas outras obras. 



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