Minha Lavra do teu Livro 17 | "MAR FECHADO MAR ABERTO", de ANGELA ZANIRATO e IVY MENON, por Nic Cardeal
Minha Lavra do teu Livro 17
- resenhas afetivas -
"MAR FECHADO
MAR ABERTO"
O AMOR À DERIVA
NO VÁCUO DA PALAVRA
"Quem és tu que me lês? És o meu segredo
ou sou eu o teu segredo?"
(Clarice Lispector, in: "Um sopro de vida")
MAR FECHADO MAR ABERTO (Rizoma Projetos Editoriais, 2023) é um romance escrito por ANGELA ZANIRATO e IVY MENON, que se constrói através da troca de cartas entre as personagens do livro, Sofia e Helena - duas amigas mergulhadas na saudade e dor da separação, depois da violência sexual sofrida por uma na infância, e que se repete na vida adulta daquela que fora testemunha ocular do estupro da primeira - acontecimentos que deixaram em ambas cicatrizes emocionais profundas.
O livro começa com uma carta escrita por Helena a Sofia e, creio que, não por acaso, o primeiro capítulo leva o nome de "Tsunami" (no turbilhão emocional diante da separação das duas):
"Sofia,
Hoje faz exatamente cem dias que você se foi. A melancolia tomou conta de mim. Desconheço os escombros que interromperam nossos sonhos. A vida me pareceu inconclusa pela crueldade da nossa separação.
Eu deveria odiar você por ter ido embora, no entanto, reverencio e sou grata por seu caminho ter cruzado o meu. Me dói o corpo inteiro. Doem-me as unhas, os fios de cabelos, a menina dos olhos, a clavícula, o estômago. A sensação foi de salgar a carne morta e podre para poder sobreviver sem você.
(...)
A vida é bruta, Sofia. Rompe ciclos, invade sonhos, corta as fitas e os laços das meninas que se amam. É muito louco saber que o mar que nos uniu, hoje, nos separou. Se soubesse que você iria para longe, teria matado as horas e o tempo. Matado a morte. Afogaríamos o mar e o tempo, abraçadas. Não haveria barcos e nem navios, nenhuma embarcação. Netuno tudo esconderia se eu lhe pedisse."
(pp. 27-28)
A narrativa acontece num vaivém contínuo - o movimento de um só "corpo que oscila de um lado para outro" - balanço das águas?, ciclos de tempestades/calmarias das emoções? Quem sabe, talvez a 'dança' que se impõe pela troca incessante de cartas, impulsionada pela angústia e ansiedade das respostas, pelas impressões causadas diante das palavras ditas (ou não ditas, aprisionadas nas entrelinhas):
"Helena querida,
Perdoa-me se acrescento angústia aos teus dias, pela demora nas respostas. Por aqui, a vida ferve. Tudo é urgente na minha existência. Tenho asas nos pés de tanta necessidade de movimento. Lembras? Conversamos, às vésperas da mudança, que sou descendente de Hermes, o deus mercador. O portador das boas e más notícias. Que no meio da tua tormenta, esta carta te seja bálsamo, querida.
Diferente de mim, nasceste inteira asas. A liberdade - sangue e fogo - te energiza. Em tuas veias lavas se misturam com adrenalina. Haveria de querer a calmaria dos que escolhem um porto para atracar definitivamente? Obviamente, não. Fluida, tua mente ziguezagueia entre o etéreo e o mais etéreo ainda. Teus olhos não foram preparados para comezinho. As mesmices são para os que caminham devagar, prestando atenção em beiras de caminho. Rio ao me lembrar de nós crianças. Sim, porque eu era frágil, por fora, mas por dentro fortaleza. Me movia por ligamentos de titânio."
(p. 57)
No decorrer da leitura, vou tendo a impressão de que Helena se assemelha a um "mar aberto": aquele lá distante, no meio do 'nada', revolto, inconcluso, tempestuoso, abissal, absorvendo tudo, quase querendo engolir todos os horizontes que o circundam, tecido em ondas transgressoras, mas que buscam incessantemente pelo encontro com a areia da praia. Sofia, um "mar fechado": contido, aparentemente sereno [na superfície das águas], prático, concreto, quase matemático, mas temeroso aos deuses das profundezas humanas.
Helena conversa com a fotografia de Sofia no porta-retrato várias vezes ao dia, ingere ansiolíticos, antidepressivos, taças de vinho - seus artifícios para preencher a vida vazia após a partida da amiga/amada. A solidão é sua sombra (p. 65). Sente-se "uma flagelada de amor olhando o mar ao longe" (p. 59). Sofia, de outra parte, renova as energias em outro continente, sua esperança de cura para as memórias do abuso sexual nunca apagado da pele, o maior território de uma alma em ruínas que se empenha em reconstrução (p. 61).
Entre cartas de cá e de lá, um vasto oceano sugere profundos mergulhos de ambas nos precipícios das recordações, em seus desassossegos individuais ou compartilhados, na solidão e no amor mútuos, mulheres sofridas e esgarçadas no corpo, coração e alma, pelas lembranças longínquas, mas nitidamente acesas.
Suponho tratar-se de uma relação simbiótica entre as duas personagens. Ouso nessa suposição justamente por crer que todo leitor torna-se 'coadjuvante' do escritor na compreensão da narrativa. Afinal, enquanto lê uma história, passa a reescrevê-la mental e emocionalmente, nela acrescentando suas próprias interpretações, sempre subjetivas!
Enfim, como já escreveu o amigo, advogado e também escritor Silviani Müller Barone, "Mar Fechado Mar Aberto convoca o leitor a refletir sobre seu medo do horizonte distante, sobre o que há no “além mar”. O medo de refletir sobre estruturas, tão pérfidas que criam um culpado óbvio e fácil: o estuprador no sentido criminal do termo. A bacia em que o poder lava as mãos dos estupros institucionalizados contra todas as mulheres e crianças de um país que se afunda em vilanias, desde seu próprio “berço”.".
Recomendo "Mar fechado Mar aberto", recomendo-o muito! Assegura-te, porém, antes de iniciar essa 'viagem tempestuosa', de que não tenhas medo de te perder em labirintos (principalmente os da mente!), de que consigas 'nadar' em profundidades absurdas, de que saibas voltar à superfície, quando necessário! E, mais do que tudo, de que possas colher "as raspas e os restos das palavras" (p. 34), porque palavras, embora limitadas, ainda são o melhor utensílio manejado pela destreza da alma, quando nos urge o outro! Porque "uma palavra pode ser escada que nos leva ao topo ou pedra que nos empurra para o abismo" (p. 42)!
Nic Cardeal, aos 31 de agosto de 2024, aniversário da coautora Ivy Menon!
Duas cartas de Mar fechado Mar aberto:
1)
"Sofia,
Estou usando batom vermelho. O dia está cinza e triste, e eu preciso enganá-lo, dar vida em forma de cor. Isso é um investimento em mim, embora mentiroso, porque queria seus beijos, nunca dados ou recebidos.
Você ainda usa aqueles batons rosinhas e suaves, que deixavam você pálida, e eu gostava? Tinha algo gótico no seu rosto. Um rosto de quem visita cemitérios, de quem se senta nas escadarias das catedrais e observa os pombos.
Quando brincávamos de teatro, você NASCIA de mim. Eu vestia você de seda, observava seu crescimento através de uma cortina transparente. Eu tinha tanto medo de quebrar seu corpinho frágil, seus ossinhos fracos. E me assustavam seus olhinhos a pedirem socorro, quando uma cena necessitava de muita energia, de um respiro mais longo. Naquele momento, eu respirava por você, como se fosse seu terceiro pulmão.
Sofia, você não foi embora, no entanto está longe. Não ir embora é deixar as memórias no outro. Você tem memórias minhas? Talvez quem foi embora tenha sido eu, e não percebi.
Sinto saudades de quando pecávamos juntas. Eu ainda peco, tomo minhas bebidas e meus tarjas-pretas. Não estou dizendo que esses artifícios são os meus pecados. Peco em pensamento. Essa clausura que me imponho também é uma forma de pecar. Eu nem me permito ser livre.
Vamos nos encontrar para cometer pecados?
Liberta minha alma, Sofia.
H.
Há lares-hospícios. E hospícios-lares? Estou presa no futuro."
(p. 86)
2)
"Helena,
Acaso seria bom se pudéssemos parar o tempo? Fomos meninas felizes. Nos amamos desde sempre. Sabíamos que nosso destino estava traçado com LINHA ÚNICA. E prosseguimos. Acreditávamos que a menina fosse imortal. Mas ela morre, Leninha. Por fora parecemos viver, enquanto a alma foi sepultada há tanto. Gostamos de nos fixar no invólucro de sementes a imaginá-lo ainda flor. A rosa morre, isso é fato.
Tu te fizeste mulher forte, sem perder a poesia. Não esqueceste do afeto. Não me abandonaste. Gosto disso. Calafrios me percorrem o corpo, apenas por me saber definitivamente separada de ti. Somente de supor à margem do teu caminho, desabo. Não chores pela infância, querida. A inadequação não tem idade. Não nos encaixávamos na família, no grupo da escola, nem com as meninas da catequese, embora fingíssemos afinidades. Seríamos as peças tortas dos quebra-cabeças falsificados?
Não, Helena. Não lamentes a menina que mataram em ti. Aliás, ter saudades não poderia significar que ela permanece viva?
Ontem, fui ao mar. Ventava muito. A areia, grossa e gelada, pela primeira vez me incomodou. Nada se parecia com nossa praia. Encontrei uma concha gigante. Ouvi o rugido das ondas que te cercam, meu amor. Anseio te prender em meus braços. Quem sabe te reconcilies contigo mesma. Oxalá te faça compreender o prazer de ser mulher. Talvez a gente volte a crer na menina.
Sou ferida aberta. Escavações de minas abandonadas. Não encontraram diamantes, nem um fio de ouro sequer. As enxurradas me encheram de esperança de me tornar rio. Um lago que fosse, a abrigar peixes e vegetação ribeirinha. Nada aconteceu. Os fossos secaram, e me vi estéril. Não há redenção, para mim, longe de ti, querida.
Acaso sou apenas letra? Carta? Não estou dia e noite do teu lado? Não habito tua mente, tua alma, tua casa?
Não te destruas, Helena. Guarda-te para mim. Estou indo.
Com amor,
Sofia."
(p. 91)
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fotografia do arquivo pessoal da autora Angela Zanirato
ANGELA ZANIRATO é natural de Itapira/SP, e reside em Paraguaçu Paulista/SP. Graduada em História, com pós-graduação pela UNESP de Assis/SP e pela UEM, Maringá/PR. É professora e escritora - poeta e romancista.
Prefaciou e escreveu diversas apresentações de livros de poesia e prosa para escritores do Brasil. Em 2019 foi curadora do 'Projeto Doze Contos Insólitos', organizado pelo poeta Márcio Saraiva. Primeiro lugar no 'Concurso Nacional de Poesia Editora Arribaçã', com o livro 'Madalenas Desarrependidas', 2020. Foi classificada no 'Concurso Nacional Maria Carolina de Jesus', projeto do Ministério da Cultura, em 2023. Participou de várias antologias e publicações, inclusive da 'Antologia Mulheres Brasileiras na Literatura', organizada por Rubens Jardim, em 2022.
Livros publicados: Madalenas Desarrependidas, (poesia, Arribaçã, 2020); Cacotopia e Tarja Preta (poesia, Rizoma, 2021); Mulheres à Margem: entre o Asfalto e o Bordel (romance, Helvetia, 2021); Mar Fechado Mar Aberto (com Ivy Menon, romance, Rizoma, 2023).
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fotografia do arquivo pessoal da autora Ivy Menon
IVY MENON é natural de Cornélio Procópio/PR e reside em Rio Negro/PR. É bacharel em Direito e Teologia, pós-graduada em Filosofia e Teoria do Direito. É escritora - poeta, romancista, cronista e contista. Foi boia-fria até os 20 anos. Após deixar o campo, trabalhou em 'O Diário do Norte do Paraná', em Maringá/PR, onde iniciou carreira como jornalista autoditada, atuando em jornais e assessorias de comunicação. Foi Chefe da 'Seção de Imprensa do Tribunal Regional do Trabalho', em Cuiabá, e do 'Cartório da Justiça do Trabalho', de 2010 a 2013, ano em que se aposentou.
Em dezembro de 2006 venceu o 'I Concurso Carioca de Poesia', promovido pela 'Associação Brasileira Cultural de Apoio à Cidadania' (Abraci), que contou, entre as parcerias, com a 'Academia Brasileira de Letras' (ABL). Como prêmio, recebeu seu primeiro livro publicado, 'Flores amarelas', poesia. Ocupou a Cadeira 31 da 'Academia de Letras de Maringá'. Foi uma das finalistas do 'Prêmio OFF FLIP 2018', na categoria Poesia.
Livros publicados: Flores amarelas (poesia, Multifoco, 2006); Matemática das algemas (poesia, Camino, 2021); Asas de terra e sangue (crônicas, Arribaçã, 2021); e Mar fechado Mar aberto (com Angela Zanirato, romance, Rizoma, 2023).
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Que coisa mais linda, isso, meu Deus! Estou emocionada, além de exibidíssima! Obrigada, obrigada, obrigada!❤️❤️❤️❤️
ResponderExcluirAdorei a resenha. É um convite a esse belíssimo livro de Angela Zaniratto e Ivy Menon (que estou lendo!). Parabéns às três queridas.
ResponderExcluirObrigada, querida amiga! Amo você!
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