"8 DE MARÇO" EM POESIA E PROSA| NIC CARDEAL
Bela, sim. Faço questão.
De resto, não.
Destacada da tua ilusão.
Muito longe das tuas mãos.
Os recatos, sou eu quem escolhe.
Dentre eles,
me resguardo
das tuas maldades,
me acautelo
dos teus conceitos,
tenho cuidado
com teu machismo.
O comportamento decente?
Esse, com certeza, tu nem sentes!
Sim, sou singela, modesta, contente,
mas não me vejas incoerente.
Sou ética, inteligente,
há quem diga que tenho talentos,
até na coragem guardo meus medos,
sou honesta, sensível e até tolerante.
Podes crer:
não me disfarço,
nem me escondo em mulher commodity
(na triste faceta
do teu nada político machismo).
Mea culpa é corrente:
sinto vergonha, rubor, até pudor,
mas também tenho minhas vaidades:
prefiro verdades
sem receios, conchavos,
conluios ou artifícios.
Quanto ao lar?
Tenho sim, não abro mão.
Graças ao trabalho: o meu ganha-pão
(esse, por certo, conheces não).
E que não ouses
(digo-te sim,
sem constrangimentos):
não te atrevas a me dar tuas ordens,
sou daquelas pessoas
que preferem boas liberdades,
sem maldades.
E, se chamares a isso
de 'fêmeas desordens',perdes tempo,
ligo não!
Bela, destacada e do ar:
a poesia é meu lugar.
Mulher livre:
minha alma é artista,
sufragista idealista e otimista.
Sou mulher de muita fé,
minha alcunha é meu viver,
não há o que temer:
um voto meu
jamais terás!
imagem do Google, As Sufragistas
*
LUGAR DE MULHER
Lugar de mulher
é na asinha
livre leve solta
concentrada ou absorta.
Modo de usar:
asas à indignação.
imagem do Pinterest
*
ALÉM DA MARGEM
Mulher de Vênus
teu lugar pleno
no mundo
no fundo
na superfície
na borda
no centro
ao redor
transborda
comporta
conspira
transpira
respira
inspira.
Mulher Afrodite
acredite
melhor
inteira
completa
repleta
partida
desfeita
refeita
vestida
desnuda
alheia
anseia
sereia.
Mulher Maria
Joana
Madalena
Geni
teu lugar é aqui:
legar
negar
rasgar
entregar
existir
resistir
parir
partir
largar
alargar
liberdade
na verdade
igualdade
na cama
na calma
na alma
na vida
no caminho
no destino
destemido.
Mulher
sem medos
sem modos
sem metades
sem contornos
sem retornos
sem condutas
sem culpas
sem limites
sem juras
sem juros
sem muros
sem insultos
parindo
desejos infinitos
cara ou coroa
depois da margem
ou na proa
além da imagem
ou da imaginação
tu (te) chamas
coração.
imagem do Pinterest
*
REDEMOINHOS
Tua mão
na rede
não é peixe
- nem esperes que eu te diga
onde fica a isca! -
na rede
não é peixe
- nem esperes que eu te diga
onde fica a isca! -
Que diabo de poeira essa
a turvar os olhos, a alma, os sentidos?
Não sei dizer se 'inda te acredito
quando vens depois das seis,
de mês em mês,
e esqueces o chapéu sobre o jornal.
Tua mão
na minha garganta gasta
é como sede escondida depois da seca.
Nem esperes que eu te dê a minha veia,
se já não sabes beber a minha sina,
se não deitas a alma em minha cama,
e nem te lembras do meu nome
depois da mesa!
Que sinal de fim de tempo esse
quando te demoras na esquina,
esperando um vento, um torvelinho,
uma onda em espiral
- redemoinho de saudade -?
(Foi assim que me disseste,
quando abriste a porta
e jogaste a chave).
Nunca mais pé de vento,
foi apenas um temporal
que passou em minha vida
ao largo do caminho
sem saída.
- Tua mão
na rede
nunca foi anzol -
(* em memória de todas as mulheres vítimas de 'crimes passionais' por arma de fogo, por arma branca, por arma)
*
À MARGEM
Eu não sou janela
- sequer porta -
guardo em mim
prisões antigas
em que receios fazem conluios
com devaneios de outros tempos.
Não me faças arruinar esperanças
- não sou feita em argamassas -
minhas fronteiras
tão estreitas
foram tecidas sem que camelos
consigam ultrapassar fendas de agulhas.
Não sou simétrica,
sou confusa
quase obtusa
meus ângulos sobrepostos
desqualificam hipotenusas.
Não tenho pisos,
meus pés são descalços de compassos,
minhas arestas são precipícios profundos.
Não queiras ocupar minha pele,
não te atrevas a conjugar
o silêncio que me comove,
nem te movas a alçar voo
em meus horizontes,
pois que minha prisão é perpétua
entre mim e a minha métrica.
Eu não sou aquela.
Nem a outra.
Se guardares a ânsia,
poderás vislumbrar um lampejo
da minha alma pendurada no vão da entrada.
Não me faças prometer descobertas!
Fui condenada à pena máxima:
não posso ser outra!
Não me desconheças:
eu sou aquela
na qual receios fazem conluios com esperanças!
Quem sabe assim pagarei o débito a mim imposto
por viver à margem da tua sentença!
fotografia de Paulo Henrique Camargo Batista
*
Eu sou o milagre
a pequena casa na floresta
despedaçada esperança
afastando a cortina
intempérie em fúria
rachaduras nos cantos das unhas
fogo na lareira
eu sou a lenha
o lanho
a carne no teu corpo
o cerne do teu ato
o ponto cego
tão exato
olhos fechados
vislumbre na percepção do amor
arquétipo desfigurado
paralelo em contraponto
a floresta na pequena casa
a tua festa finalizada
a carne fraca
a carne louca
osso duro de roer
toda indecência
passou da hora
a minha alma
já deu flor
- não suporto mais morrer todos os dias -
*MUTISMO SELETIVO
A poesia não passa
de uma tristeza entalada
em minha garganta gasta.
(morrer de mulher vai passar?)
imagem do site 'sindepe.org.br'
*
D(R)ESISTÊNCIA
Desisti de ir para Pasárgada.
O trem anda fora dos trilhos, eu sei,
as loucas somos nós, aqui soltas,
sem conseguir comer
nem o pão que o diabo amassou,
quem dera beber o vinho
- o sangue do cristo (destituído) -
as mulheres sangrando
muito mais do que entre as pernas
- no esquerdo do peito -
a dor de um desamor medonho
daqueles homens que vêm,
vão
e matam.
e matam.
Desisti de ir para Pasárgada.
A passarada ainda canta
na cortina de fumaça,
na fogueira alheia das desgraças
outras desgraças tão nuas.
Não adianta a rosa vermelha num dia,
n'outro,
a vermelhidão no rosto,
o tapa esfolando até pingar no prato
o vermelho sangue,
o vermelho batom,
a bota, o chute, a arma, o cuspe,
quanto nos custará a culpa?
(Tu cospes ou engoles tua culpa?)
o tapa esfolando até pingar no prato
o vermelho sangue,
o vermelho batom,
a bota, o chute, a arma, o cuspe,
quanto nos custará a culpa?
(Tu cospes ou engoles tua culpa?)
Se você é amigo do rei,
pode ir,
pode ir,
eu fico,
insisto
e resisto,
'inda que seja vã
tão efêmera esperança.
arte de Márcia Cardeal
*
BURCA
Fazer do poema um lugar de habitar,
onde seja possível abrigo e silêncio
para que palavras inquietas
fiquem marcadas
- lacres vermelhos
tatuados na alma -
Fazer da queda o recomeço
como quem resiste, insiste, consiste
onde a voz [suspensa], pelos olhos continue a dizer
do proibido, do reprimido, do incontido.
Que possamos esticar os dedos
no sagrado propósito de tocar os céus
- nada melhor do que
todas juntas
todas uma
para sonhar com amplidão -
Não adianta esconder, calar, espancar
- não adianta matar -
mulheres nascem a rodo, em tudo, por todos
mulheres são desde o início
- e depois do fim -
(* poema em homenagem às meninas e mulheres afegãs)
fotografia de Boushra Almutawakel
*
DESIGUAL
Dize-me
de que é feita a tua carne,
essa que te faz maleável ao teu corpo em movimento,
de que cor é o sangue que te corre pelas veias
e que te dá o alimento ininterrupto,
de que é feita a tua alma,
aquela que te faz consciente de ti mesmo,
que te dá a razão, os sentidos, a percepção de mundo,
para que te faças assim,
vil herdeiro de tantos atos insanos, e profanos, e perversos, e regressos,
a ponto de dilacerares teus próprios pesares e te considerares superior?
Dize-me
de que material és feito
para te julgares senhor das mil razões
e proprietário vitalício daquela que te pariu?
Com qual dignidade te vestes
para bradar tua superioridade às custas da exclusão diária de gênero e de raça,
quando te apossas do verbo mais alto
e gritas tua violência fora de todas as medidas
na casa que te dá guarida,
na mão que te prepara o pão de cada dia,
nos lábios que te beijam
e no coração que te entregou todo o afeto outrora tão sonhado?
Dize-me
por que te atreves a violar teu lar,
por que razão te atinas a querer assassinar aquela que pensas ser tua,
por que arrancas sua roupa e a pões nua sobre a cama,
em busca de um prazer de ‘rua sem saída’,
e segues a matá-la pouco a pouco, dia a dia,
pelas beiras, ao redor, por dentro e por fora,
até o golpe derradeiro,
como se fora ela propriedade tua,
a mulher que te pôs a mesa e te deu o alimento de toda a vida?
Dize-me
o que pretendes com teu dedo em riste
com tua agressão em salto
com teu membro em surto?
De que lado irás cair quando estiveres em súbito pranto,
arrependido de um machismo estreito,
de um racismo perverso
que te encurralou ao chão?
Dize-me
por que mais de 60% das mulheres assassinadas no Brasil
– quando raça encontra classe social –
são mortas por serem negras
por serem negras pobres
por serem negras pobres mulheres?
arrependido de um machismo estreito,
de um racismo perverso
que te encurralou ao chão?
Dize-me
por que mais de 60% das mulheres assassinadas no Brasil
– quando raça encontra classe social –
são mortas por serem negras
por serem negras pobres
por serem negras pobres mulheres?
Quem és tu, afinal,
além de um efêmero humano
passível de descarte pelo tempo e pela vida
– aquela mesma que te foi dada,
mas que te pode exigir devolução imediata,
a qualquer tempo, dia ou hora? –
Dize-me
por quê
para quê
até quando?
(* #racismo estrutural mata/#violência contra mulheres negras)
fotografia Getty Images
*
NÃO DEIXES DE IR
Vai até Baldim
ou,
se não puderes,
vai até o jardim,
se não tiveres,
vai até o vão do teu sertão
[ou nas páginas de Guimarães!]
Vai até a soleira de alguma janela,
senta-te à beira de qualquer estrada,
na poeira da rua de terra,
na calçada movimentada,
em uma poltrona desabitada,
molha os pés na espuma do mar,
mergulha nas águas de qualquer rio,
cachoeira ou ribeirão.
Vai,
não deixes de ir a algum lugar,
nem que seja por dentro de ti
- principalmente
[e sempre]
por dentro de ti -
Vai até onde estás,
dá-te um sopro, um gosto, um carinho,
lembra-te do olhar de Clarice à procura de si,
não abandones a poesia de Cecília,
de Hilda ou Ana Cristina,
procura pelas receitas de Coralina:
nas palavras ou na cozinha,
nunca te esqueças de Adélia,
assombra-te com as confissões de Carolina,
lê Simone, pergunta por Sophia,
mergulha em Conceição,
jamais te distancies de Virginia,
ouve o que diz Sueli, Angela,
segue os conselhos de Alice,
nunca te afastes de Marielle,
apropria-te de todas elas
- uma a uma -
das que moram em tua pele
[da mãe, da avó,
de todas as que chegaram antes de ti],
das que voam em teus arredores,
das que virão no futuro
- sozinhas ou aos milhares -
Vai até Baldim
pergunta por Dindinha Maria,
Dona Geralda,
não deixes de ir
conhecer as histórias
- uma a uma -
das mulheres de Baldim, Beagá,
[de todos os 'Brasis']
nos sonhos
na obstinação
no cansaço
nas cicatrizes
na transparência
- nos respiros de Dalva -
'Para diminuir
a [tua] febre de sentir'
o peso,
as dores,
os naufrágios,
as palavras ditas
[ou silenciadas]
de todas as mulheres
em ti,
nunca deixes de rir
[ou de chorar de saudades de ti!]
- E, se puderes,
anota, escreve, registra,
se não puderes,
também! -
Não deixes de ir
[e de responder:
- Vou sobreviver?]
(* inspirado na leitura do livro "Para diminuir a febre de sentir", de Dalva Maria Soares)
*
TERRA PLENA
Sim. Minha 'terra' é plana! Não aquela que esperas navegar até alcançar as arestas. Não te atrevas a tocar em minhas bordas! Nem com tuas mãos, tampouco com teus passos pesados de macho a sentir-se alpha. Não te enganes tanto com tuas certezas quadradas a ocupar tuas caixas fechadas. Abre as tuas arestas. Permite o vento, o frescor das brisas, a agitação necessária das tempestades ligeiras. Não te deixes cair em tentações idiotas de um corpo másculo que só se importa com satisfações de gozo. Estende teus olhos para além dos horizontes do corpo. Tu não és assim tão pouco! Não te satisfaças tão somente com uma carne que em breve estará gasta, desvanecida entre as dobras do tempo menino - esse sim, proprietário direto, perene, completo, das tuas noites e dias, a cobrar-te insistentemente o pedágio encarecido do teu respiro no mundo. Não te enganes com tão pouco e ilusório paraíso!
Sim. Minha 'terra' é plena! Aquela a qual, a teu bel prazer, jamais terás acesso ou direito de uso, sem que tenhas licença ambiental do meu coração, nos conformes únicos do meu próprio desejo. Quiçá conceder-te-ei servidão de passagem, vez por outra, ao lado de cá da minha margem! Ainda assim, teus ódios repentinos estarão sujeitos a despejos, pois saibas que não mais sou afeita a sofrimentos contínuos!
Não esperes que essas minhas planícies, depressões ou monte de vênus, te sejam navegáveis até o teu descobrir das minhas entranhas! Não te deixarei entrar por mero capricho ou desejo incontido do teu órgão ativo! Somente encontrarás abrigo no ventre do meu mundo quando souberes respeitar-me enquanto útero!
Sim. Minha 'terra' é prana! Ar em movimento. Respiro fundo no contratempo. Torvelinho necessário em tempo de contraponto. Também é montanha, precipício, labirinto ou caminho. Fome, desejo, sede de ninho. Mar profundo, veio d'água, ribeirão. Vertente de água salobra, cachoeira, turbilhão. Minha 'terra' é fenda, buraco negro, cometa, constelação. É céu aberto, chuva fininha, temporal de verão.
Sou mulher. Daquelas que amamentou teu coração. Que te ensinou o passo, a palavra primeira, que fez tua comida e te ergueu do chão. Que lavou tua ferida e te salvou do desespero da ilusão. Por isso, não te atrevas, sem minha licença, a devastar minhas fronteiras, estabelecer meus limites, ou sufocar minhas veias! Nem te assustes se te chamarem a fazer minha louvação! Aceita-me parceira, companheira em amor e condição. De outro modo, desejo-te sorte na estrada, segue sozinho, não te quero sem coração! Pois minha 'terra' é gana, esperança, germinação!
(* para todas as mulheres vítimas de preconceitos e/ou violências de gênero, em razão de sua 'terra' (corpo))
*
fotografia do arquivo pessoal da autora
NIC CARDEAL (Eunice Maria Cardeal) é natural de Brusque/SC, e reside em Curitiba/PR desde 2006. Graduada em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL; certificada com habilitação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB; funcionária pública federal por 27 anos, tendo atuado como Assessora Jurídica/Oficial de Gabinete na Justiça Federal de Santa Catarina e do Paraná.
É integrante do movimento nacional Mulherio das Letras desde sua criação, em 2017; Editora Adjunta da publicação eletrônica "Revista Feminina de Arte Contemporânea Ser MulherArte". Possui textos publicados em 52 coletâneas (no Brasil, Alemanha e Portugal).
Livros publicados: Sede de céu (poemas, Editora Penalux, 2019); Costurando ventanias (contos e crônicas, Editora Penalux, 2021) e A menina que queria entender das águas (infantojuvenil, Editora Caravana, 2023).
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